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Capítulo 1

Destino. Uma palavra estranha, como se nossas vidas estivessem ao léu e uma força maior decidisse o que fazer com elas sem que pudéssemos escolher. Nunca colou comigo, eu sabia qual era o meu destino. E contrariando a ocasionalidade da maioria dos adolescentes, esperei ansioso por meus dezoito anos, pela data em que eu pegaria meu destino pelas rédeas e o guiaria com minhas próprias mãos. Ainda me lembro das palmas, dos sorrisos, dos gritos eufóricos por conseguir entrar para o Instituto Militar de Engenharia, uma das instituições mais respeitadas do país. Cinco longos anos para me formar engenheiro em fortificação e construção e me tornar um oficial com a patente de primeiro-tenente.

Mas o destino que sempre esteve seguro em minhas mãos, escapou por elas e se dissipou como fumaça no ar. As rédeas do destino foram soltas e não há mais como segurá-las.

O espelho em minhas mãos, reflete o meu fracasso.

— O que você vê? — pergunta Camile, a psicóloga que visito desde que saí das forças armadas com uma perna amputada.

Dou de ombros segurando o pequeno objeto redondo. Não enxergo nada além da longa barba que adorna minha face. No exército, mantinha meus cabelos extremamente curtos e meu rosto liso. Agora, mal me reconheço com os cabelos caindo pela testa e a barba tão longa que esconde meu pescoço.

— Você havia me dito que olhar para eles te ajudava a pensar.

Evitando minha imagem, abaixo o objeto para fixar o olhar no teto branco do consultório.

— Não vejo nada — respondo, sem entusiasmo.

Camile suspira.

— Você havia me dito que em alguns momentos se esquecia da amputação, era como se seu corpo fosse completo. Essa sensação não pode ser descrita como um próximo passo, o passo em que se reconhece outra vez e aceita seu corpo? — indaga ela, cruzando as mãos.

Solto um riso abafado e esfrego minha barba.

— Quando estou deitado, assistindo um filme ou lendo, eu realmente esqueço que não tenho uma perna, porque nessas ocasiões eu não preciso de uma, mas isso acaba assim que preciso me levantar... No banho... É humilhante ter de me sentar numa cadeira porque é impossível ficar de pé e não cair num piso molhado com uma perna só... Isso não pode ser considerado um próximo passo, é no mínimo a falta de um, não acha? — questiono, virando a cabeça em sua direção.

Camile ajeita os óculos em seu rosto fino, em seguida anota algo em sua caderneta.

— Você está se adaptando à prótese? Já tem um ano que...

Aperto os olhos por um segundo ao ouvir sua pergunta. Conheço a dinâmica das nossas sessões, sei que a pergunta será seguida de um estímulo do tipo: “a prótese é sua perna, ela te levará aonde quiser ir”.

— Ela me permite ficar de pé e andar como o amputado que sou. Mas a prótese não é minha perna, porque se eu tivesse minha perna não precisaria dela. — Relanceio sobre o relógio pendurado na parede atrás de Camile e noto que a sessão está perto do fim.

Aprumo-me na poltrona pronto para o momento de me levantar.

— Zander, eu sei que a prótese não é sua perna. Entendo o quão traumático foi ficar soterrado debaixo daquele prédio e ainda ter sua perna amputada. Entretanto, você vai perceber que a prótese te dará uma vida plena outra vez. Acredite em mim, vai acontecer. — Ela termina exibindo um sorriso aberto que enruga as laterais de seus olhos castanhos.

— Eu estava fazendo o meu trabalho, estava naquela cidade para cumprir minha missão e ajudar aquelas pessoas. Fui treinado para enfrentar situações de guerra e coisas assim podem acontecer quando se entra num prédio em ruínas. Quando entrei naquele lugar foi para salvar o maior número de civis e eu salvei. O que não aceito é não continuar, de estar com o meu batalhão e participar das missões pelo mundo — hesito um segundo, pensando se vale a pena continuar —. Deveriam ter me deixado morrer, uma morte heroica seria melhor que a vida inútil que levo.

— Nenhuma vida é inútil. Você...

— Terminamos? — pergunto, apoiando minhas mãos para me equilibrar e ficar de pé.

— Sua marcha está melhor — diz ela, acompanhando meu andar até a porta.

— Até a próxima, Camile.

Quando me obrigaram a vir a estas sessões, achei que elas ajudariam. No entanto, são mais do mesmo. Camile tenta me mostrar algo bom, eu tento mostrar para ela que nada está bom e seguimos perdendo nosso tempo.

Avisto minha mãe lendo uma revista na recepção do consultório. Ela se levanta ao me ver e me oferece um sorriso que retribuo fracamente. Desde que me tornei um militar reformado do exército estou morando na casa dos meus pais. Na maior parte do tempo, eles fingem que nada aconteceu, é como se eu não tivesse passado dez anos servindo nas forças armadas e voltado aleijado para a casa. Eles evitam falar sobre o dia do acidente e nunca me perguntaram o que de fato aconteceu para eu terminar preso sob os escombros. Para eles, não aprofundar o assunto é a maneira que encontraram para lidar com o retorno do filho inábil.

Faço como eles, finjo que viver sem uma perna não me martiriza a cada maldito minuto do dia. E assim vamos fingindo que está tudo bem, mas a verdade é que nada está.

Após a amputação foram três meses sem andar, um deles, na cama do hospital. Depois veio a fase de dessensibilização, fisioterapia pré e pós-protetizaçãoe com ela as dores e feridas na pele ainda em cicatrização. Reaprender a andar é um processo longo, dolorido e cansativo; é se acostumar com o peso da prótese, aprender a ter equilíbrio e, o mais difícil, ensinar o cérebro que aquele pedaço de metal articulado agora é a minha nova perna.

Ao entrar no carro, minha mãe gira a chave e começa a dirigir, é ela quem me leva aos lugares que preciso até eu tirar outra habilitação e comprar um carro adaptado para pessoas com deficiência. Deficiência. Ainda não me acostumei a esta palavra e não sei se um dia vou me acostumar.

— Vou fazer panquecas à noite. Era seu prato favorito quando criança, lembra? — diz ela, rindo da lembrança enquanto faz uma curva.

Giro a cabeça e a observo: o sorriso frouxo, as rugas ao redor dos olhos, os fios prateados... Tenho a impressão de que ela tinha bem menos fios e rugas antes de eu voltar...

— Não lembro, mãe — respondo, sinceramente.

— Como não? Estava sempre me rodeando e pedindo panquecas — reforça, parando o carro no sinal vermelho.

Ela continua a falar sobre os meus pratos favoritos na infância enquanto o sinal muda para verde e continua a dirigir. Fecho os olhos e recosto a cabeça no banco, pensando na porcaria de vida que eu tenho agora.





Ao chegar em casa, cumprimento meu pai sentado em sua poltrona com o jornal do dia aberto nas mãos, ele baixa as páginas e me oferece um aceno de cabeça. Sigo para meu quarto e sentado na cama deixo a cabeça pender entre minhas mãos, não consigo parar de pensar que não aguento mais esses dias reprisados. Desde que voltei é como se eu estivesse preso numa máquina do tempo que ativa o mesmo dia todos os dias. E o mais enlouquecedor é não ter nenhuma perspectiva de como mudar isso.

Passei tanto tempo vivendo em quartéis que não sobrou nada da vida que eu tinha; não tenho mais amigos por perto, não tenho trabalho, eu... não tenho nada. No fim das contas, eu perdi muito mais que uma perna.

Resolvo me exercitar para tentar colocar meus pensamentos em ordem.

— Vai fazer exercício? — pergunta minha mãe quando me vê passar para os fundos da casa onde montei uma estação de musculação.

— Vou.

Ajusto o peso do supino e me deito na plataforma. Com as mãos na barra começo a levantar o peso, repito várias séries até quase não sentir mais meus braços, em seguida acerto o aparelho para uma sequência de fortalecimento dos posteriores de coxa e quadríceps. Busco me exercitar o máximo de tempo possível no dia, passo horas e horas nesses aparelhos. Manter a forma física que eu apresentava enquanto estava no exército é a única coisa que me impede de enlouquecer completamente.

— Zander, venha ver quem veio nos visitar — ouço minha mãe chamar.

Passo uma toalha pelo rosto e tronco para secar o suor e me levanto.

— Por que não avisou que viria? — minha mãe pergunta num tom alegre.

— Escolhi fazer uma surpresa, Tamara. Ah! Aí está você, meu sobrinho preferido — diz tia Suria quando me vê entrar na sala.

— Sou seu único sobrinho, tia! Estou suado — aviso, quando ela abre os braços.

— E quem se importa. — Ela me abraça por um longo tempo. — Como você está? — questiona, afastando-se um pouco para analisar minhas pernas, em especial, a prótese.

— Bem! — Minto, porque não existe razão para eu lhe dizer meus sombrios dilemas.

— Isso é ótimo.

— Zander está muito bem, estava se exercitando agora mesmo — diz meu pai.

— Que bom, que bom! — Ela me dá tapinhas no braço e se senta no sofá. — E você, Santiago, o que anda fazendo? Vejo que não é se exercitar. — Tia Suria segura o riso ao implicar com meu pai que passa a mão sobre a barriga saliente.

Minha mãe começa a rir.

— Eu vou tomar um banho — respondo, apontando para trás.

Deixo-os na sala e caminho até meu quarto, de onde os ouço conversar e rir. Sento-me na cama e tiro a prótese. É difícil olhar para baixo e ver que me falta uma parte, mas é muito mais difícil pensar em tudo o que a falta dessa parte me tirou.

Estico um braço para alcançar a muleta encostada na cabeceira da cama, apoio-me nela e sigo para o banheiro adaptado com uma cadeira de banho. E embora eu possua uma prótese que aceita ser molhada, os médicos me disseram que: Tomar banho com prótese é o mesmo que tomar banho de sapatos, você precisa lavar e higienizar o coto todos os dias.

Sento-me na cadeira e puxo bermuda e boxer até estar nu. Um ato simples como um banho se tornou a pior parte do meu dia, é a hora onde tenho que encarar sem máscaras, sem disfarces, a limitação que eu tenho. A hora onde essa pele arredondada e cheia de marcas mostra que eu não sou tão forte quanto achava... que eu sou apenas uma marionete nas mãos do destino.





— Vocês sabem como eu amo Maria da Fé, não sabem? Não tenho nenhuma vontade de voltar a viver na capital, nessa loucura de carros, buzinas, assaltos... Não, não! — argumenta tia Suria, balançando as mãos na altura do rosto.

— Não é assim também, Suria. Eu tenho uma vida bem sossegada.

— Sossegada? Você já teve dois carros roubados e vive com crises de bronquite por conta dessa poluição. Não venha me dizer que isso é sossego, Santiago!

— Acho Maria da Fé linda, mas não conseguiria ficar na cidade por mais de um mês, parece não ter nada para fazer lá, Suria — rebate minha mãe, entregando-me uma tigela com purê.

Tia Suria ergue as sobrancelhas, chocada com o comentário de sua irmã.

— Tem tanta coisa para fazer que eu passaria um dia inteiro listando. Os campos de oliveiras estão mais lindos, são tantas plantações que logo todo mundo vai saber quem é Maria da Fé neste país.

Eles dão uma pausa na conversa para mastigar, mas logo voltam a falar:

— Hum! Esse picadinho de carne está divino, Tamara. Lembra o da mamãe.

— Lembra mesmo — gaba-se ela, orgulhosa de sua comida ser comparada à da minha avó, que era a chef da família.

— Se nossos pais ainda estivessem vivos iriam amar viver em Maria da Fé. — Tia Suria volta a enaltecer a cidade que escolheu depois que ficou viúva.

— Você nunca foi tão efusiva ao falar de lá, Suria. Está pensando em se candidatar a prefeita? — Meu pai questiona, rindo com a boca aberta e cheia de comida.

— Ora essa, veja esse homem que continua sem modos à mesa.

— Tenho que concordar com Suria, Santiago — reclama minha mãe, dando um tapa na mão dele.

Não tenho entusiasmo para interagir, então paro de prestar a atenção nas trivialidades que dizem e foco somente no meu prato até ouvir meu nome.

— E você, Zander?

— O que tem eu? — pergunto, sem ter ideia do que me foi perguntado.

— Você viveu em vários lugares quando estava no exército, não tem vontade de visitar outros tantos?

Baixo o olhar pensando no que dizer. Um, sim, é o que ela espera, e então dará uma aula sobre sair e visitar lugares, mas se eu disser não é provável que faça a mesma coisa.

— Não — respondo simplesmente.

Volto a comer, mas noto os três se entreolharem em silêncio, como se eu tivesse dito algo absurdo ou ofensivo. Repouso os talheres ao lado do prato, viro-me para minha tia.

— Mesmo se eu tivesse vontade, não haveria muitos lugares para eu ir agora que eu... que eu...

Minha mãe pigarreia e se levanta dizendo:

— Vou pegar a sobremesa. Fiz uma mousse de abacate que vocês vão adorar.

Eu sei que não sou uma boa companhia, sei que ficar ao meu lado é tão sufocante para eles quanto é para mim. Por isso, fico nos fundos me exercitando ou no quarto lendo. Assim, eles podem manter sua rotina sem ter de lidar diretamente comigo por muitas horas do dia.

Regresso ao quarto quando se levantam da mesa. Escolho um livro, pronto para me perder na leitura e esquecer da vida algumas horas.

Depois de algum tempo ouço uma batida à porta. Tia Suria coloca a cabeça no vão e pergunta se pode entrar. Ela é pequena, menor que minha mãe, os cabelos tingidos num tom de loiro escuro é a mesma cor de seus fios naturais. Caso não fosse pelas rugas que os anos lhe trouxeram, sua aparência seria a mesma desde que eu era um menino.

— Posso me sentar? — pergunta ela, apontado para minha cama.

— Claro, tia. — Ela se senta e analisa o quarto que ainda ostenta a decoração adolescente de antes de eu ir para a escola militar.

— Você ainda é fã dessa banda? — Aponta para um poster do Green Day preso na parede desde que eu tinha dezessete anos.

— Ainda. — Alguns segundos se passam sem que ela diga mais nada, apenas olha ao redor. — Aconteceu alguma coisa? — questiono.

Tia Suria respira fundo.

— Querido, eu quero te propor um trabalho.

Ela se vira para mim, segurando uma mão na outra na altura do peito.

— Trabalho?

— Em Maria da Fé, no projeto de ampliação da fazenda Villa Oliva.

De primeiro momento, acho que ela está brincando e sorrio de canto, mas o semblante sério mostra que diz a verdade.

— Eu...

— Você é engenheiro civil. Martim e Pilar precisam de alguém para projetar e acompanhar a construção de um novo armazém, eles vão aumentar a produção e...

— Tia... — começo a dizer, interrompendo-a. Como ela pode pensar que nesta condição eu possa ir à cidade que mora trabalhar em qualquer coisa que seja.

— Sei que você quer negar, que você quer me dizer um sonoro não. Como aquele que me disse há pouco no jantar. — Ela hesita um segundo. — Posso demorar para vir, mas sei o que está acontecendo, querido, você só vive entre essas paredes.

Ela tem razão, é exatamente isso o que acontece, passo meus dias enlouquecendo dentro desta casa. Mas, não porque quero e sim porque fui obrigado quando minha perna foi arrancada do meu corpo.

— Não preciso disso, tia. — Ela entende a seriedade no meu tom. A última coisa que quero agora é mais alguém lamentando a minha vida.

— Não vim só por isso, eu queria ver vocês, pessoalmente. — Ela sorri e ajeita seu casaquinho de lã.

— Agradeço que se preocupe comigo, mas eu não preciso de...

— Sou eu quem preciso, Zander. — Ela segura minhas mãos. — Havia um engenheiro que fazia esses projetos na cidade, mas vários produtores tiveram problemas com ele. Pilar me perguntou se eu conhecia alguém na capital e eu lembrei de você. Você estudou tantos anos, sei de sua competência...

— Isso não é...

— Um plano para tirar você de casa? É claro que não! Acabei de dizer à sua mãe sobre esse trabalho e ela não gostou. — Ela revira os olhos para expor que não dá bola para minha mãe. — Mas, você teria que morar em Maria da Fé por um tempo.

— Eu não dirijo e...

— Eu dirijo — responde, apressada. — Além do mais, a cidade tem vários motoristas que passam o dia levando as pessoas de uma fazenda para outra.

Baixo a cabeça ponderando sua proposta. Talvez seja uma maneira de eu desempenhar a profissão que aprendi dentro da armada, talvez seja uma forma de eu ter alguma perspectiva nessa vida nula e vazia que levo. Talvez seja o destino acenando para mim outra vez.

 
 
 

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