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Capítulo 10


Pilar



Eu não deveria ceder ao seu pedido, não deveria ficar aqui enquanto sente dor. Mas, ainda que eu saiba que devo me levantar e sair correndo, algo nele me faz atender e não me mover.

— Zander? — murmuro seu nome, conforme ele usa a outra mão para friccionar sua coxa com mais e mais vigor. Seus lábios comprimidos numa linha fina, a mandíbula rígida e as veias saltadas de seu pescoço não escondem o que sente. Ao contrário, deixam bem claro que seja lá o que for é muito doloroso.

— Não posso ficar aqui olhando — falo, tirando sua mão da minha e me levantando.

— Por favor! — implora ele. Paro ao ouvir sua voz como uma súplica desalentada. Giro meu corpo e o encaro, sem abranger como ele pode rogar por não ajuda.

— Então me diz o que está sentindo.

— Minha perna dói, é só isso. — Ele tenta fazer parecer menos do que é, mas sua face mostra que é muito mais do que isso.

— Qual perna? — A pergunta salta dos meus lábios ao vê-lo segurar a prótese.

— A que não existe mais. — É límpido o rancor em suas palavras. Volto até ele e sem cerimônia ou embaraço começo a puxar a barra de suas calças para cima, exibindo o metal da prótese, e é só isso o que tem aqui, metal. Ele nota a confusão estampada no meu rosto porque um riso curto escapa de seus lábios em meio a mais gemidos.

— Me pergunto o mesmo — murmura, entredentes.

Desisto de chamar Suria e fico com ele no chão por volta de uns trinta minutos, é mais ou menos o tempo que demora para que ele consiga se levantar sem dor.

De pé, Zander suspira passando as mãos pelo rosto e cabelo para se recompor. Ele ergue o pé com a prótese, elevando-o uns dez centímetros para a seguir bater no chão com alguma força. Testando a prótese, ou membro, ou a dor, eu não sei dizer.

— Não dói mais? — pesquiso.

Ele acena com a cabeça em negativa.

— Você sempre tem essas dores? — Sei que talvez não devesse fazer tal questionamento, ele não parece ser o tipo de homem que divide seus dilemas com alguém, mas a curiosidade é mais forte que eu.

— Desculpe por fazê-la…

— Não tem do que me pedir desculpas. Suria sabe?

— Não! E pretendo que continue assim. Se ela descobrir… meus pais saberão no minuto seguinte.

Preciso dominar minha língua para não disparar uma infinidade de perguntas, tais como: Por que seus pais não podem saber? Como você perdeu sua perna? Quanto tempo faz? Por que está sentindo dor e o que fará se ela voltar?

— Desculpe se te assustei, eu… — começa a dizer, após um longo suspiro.

Quando acordei estava decidida a evitar qualquer interação com ele que não fosse sobre o trabalho na fazenda. Estava preparada para mostrar-lhe a fábrica e esperar pela obra pronta sem que precisássemos estreitar laços. No entanto, assistindo a esse olhar de quem está perdido, de quem não tem a menor ideia de para que lugar ir, com quem ir ou por que ir. Como se sua vida estivesse totalmente fora do prumo, como se seu destino tivesse sido jogado pela janela e ele não soubesse como recuperá-lo, algo em mim se compadece e comove.

— Não precisa se desculpar. Fico mais tranquila que está bem — sussurro as palavras, estremecida por seus olhos brilhantes. E contrariando o que havia planejado, digo: — Vamos almoçar e beber alguma coisa?

Incerto, ele pensa alguns segundos, mas aceita. Zander caminha devagar para o carro. Ele não tem o mesmo andar de uma pessoa com as duas pernas, é como se uma delas fosse mais pesada que a outra e demandasse mais esforço para mexê-la.

Será que pode ser isso a causa dessa dor, esforço por carregá-la? Não! Seu porte físico denota que o peso da prótese não faria tanta diferença, e mesmo assim, hoje em dia essas próteses são feitas de metal leve. Então, o que pode ser?

— Vocês demoraram! — Pina e Pietra reclamam ao passarem correndo por mim e Zander.

Ando com ele até os fundos da casa, onde os funcionários da fazenda começam a se reunir com suas famílias para comer e beber ao redor do jatobá com mais de cinquenta anos de idade. Esse espaço pode parecer rústico para alguns, mas para nós, têm tudo o que precisamos.

— Patroa, achei que não vinha — grita Môa ao me ver.

— Estava apresentando a fábrica para Zander — falo, apontando para ele que continua ao meu lado. — Ele é o engenheiro responsável pela construção que em breve nos dará capacidade para produzir muito mais azeite!

Os homens gritam com os braços para o alto e um a um se apresentam para Zander com suas mãos esticadas, ele retribui os cumprimentos um pouco sem jeito. Eles estão tão ansiosos quanto eu para aumentarmos a produção, tirar do papel o sistema cooperativista ajudará a maioria dos microprodutores de Maria da Fé.

— Saúdem o engenheiro que estará a transformar nossa fazenda. — Meu pai surge animado, estendendo sua mão. Zander parece abatido, quem sabe não esteja acostumado com o alvoroço que os rapazes promovem ou sua perna ainda esteja doendo.

— Venhas beber conosco — diz meu pai, arrastando-o para o meio dos homens.

Acompanho-o com o olhar até que esteja sentado entre meu pai e os outros, eles lhe entregam um copo aperitivo e Joaquim derrama o licor de jabuticaba que produz com Madá em sua casa. Zander sorve a bebida e em seguida recebe mais uma dose. Espero que esteja acostumado a beber ou saiba dizer não. Caso contrário, esses homens o embebedarão antes de o sol se pôr.

Repasso o momento em que ele desceu ao chão sentindo dor, visualizando sua expressão desesperada, sua respiração ofegante e a maneira como segurou minha mão. Para afastar o pensamento saio atrás de Dona Gertrudes. Mas assim que entro na cozinha encontro-a abraçada com o João, tento voltar, porém é tarde demais.

— O que quer aqui, menina? — ela ralha comigo, enquanto João se afasta.

— E vocês, o que estão fazendo? — pergunto, perplexa. João não sabe onde enfiar a cara, claramente embaraçado.

— Vou esperar lá fora. — João passa por mim segurando a aba de seu chapéu.

— O que foi isso que eu vi? — Cruzo os braços, encostando no batente da porta.

Ela tira o pano de copa preso no seu avental e diz:

— Em vez de atrapalhar o namoro dos outros, por que não vai arrumar um para você? — rezinga ela, correndo atrás de mim.

— Vim para te ajudar, não para atrapalhar seu namoro — rebato, gargalhando ao conseguir tirar o pano de suas mãos. — Mas agora quero saber como anda esse namoro.

Ela ignora minha pergunta, tirando do armário uma garrafa de vinho, uma das melhores e mais antigas da fazenda.

— Uau! Por que separou essa garrafa? — Apesar desses vinhos pertencerem a meu pai, é ela quem os controla e decide quem é merecedor de uma taça.

— Vá arrumar um namorado para você. Beba com o sobrinho bonitão de Suria. Leve uma taça bonita — diz, entregando-me a garrafa e duas das nossas melhores taças.

— Sério isso? — Devolvo a garrafa, rindo de seu atrevimento.

— Por que não? — Ela apoia as mãos na cintura e inclina a cabeça.

— Não vem com ideia. Não. Não! — respondo e volto para os fundos.

Sirvo-me com um pouco de galinhada e observo as meninas brincando e comendo. Sento-me ao lado de Suria que sentinela meu pai com olhos de lince. Penso se não é melhor eu interferir de uma vez antes que seu coração saia partido.

— O que está olhando? — investigo, como quem não quer nada.

— Coisa nenhuma — responde, disfarçando. Ela sorve um gole do seu refrigerante.

— Suria, sabe onde meu pai estava no aniversário das meninas? — Ela me encara, elevando uma das sobrancelhas, interessada em saber. — Estava nos limites da fazenda, na última colina. Era lá que ele se encontrava com a minha mãe quando começaram a namorar. Era o lugar secreto deles, ela me contou muitas vezes de como fugia dos meus avôs para se encontrar com ele e como aquela colina se tornou o lugar preferido para namorarem.

Suria não expressa reação.

— Ele continua indo até lá… no dia da morte da minha mãe — completo.

— Por que está me contando isso? — pergunta ela, desviando o olhar.

— Porque eu gosto de você e as meninas também. Eu quero que ele siga em frente, que namore de novo, quem sabe se casar novamente. Mas não sei se isso vai acontecer. Se você quiser tentar, seja ciente de como o coração do velho Martim é. Ele pode ser esse português alegre, simpático e cheio de energia, mas nunca esqueceu minha mãe. É por isso que ele desaparece todos os anos no mesmo dia.

Suria baixa a cabeça.

— Vocês querem que ele se case outra vez? — indaga.

— Queremos que ele supere a morte da minha mãe.

— Martim e você são parecidos — aponta ela.

— Todo mundo diz que sou a cara da minha mãe — refuto, enfiando mais uma garfada da galinhada na boca.

— Não estou falando da aparência. Os dois guardaram o coração no fundo de uma gaveta — finaliza, levantando-se.

Suria caminha até os rapazes, ela diz alguma coisa e eles riem. Zander se aproveita da distração e se levanta deixando o copo aperitivo de lado. Quantas doses será que o fizeram beber?

Escolto-o com o olhar e percebo que está vindo até mim. Nossos olhares se cruzam e se sustentam. Sinto minha respiração acelerar a cada passo que ele dá em minha direção.

— Cheguei! — Amara se joga ao meu lado, batendo seus cachos vermelhos em meu rosto.

— Caramba, Amara! — reclamo, tirando os fios presos nos meus lábios.

Zander se detém ao ver Amara, ele intercala seu olhar entre mim e ela.

— Eu nunca consigo vir. No dia em que me programo para fechar a loja mais cedo todas as mulheres de Maria da Fé resolvem comprar lã para tricô — justifica ela.

Meus olhos ansiosos continuam em Zander.

— Por que elas tinham que sair em procissão até a loja hoje?

— Não tem muito tempo estava preocupada com o movimento que tinha baixado — esclareço, assistindo a Zander desistir e voltar para o lugar onde estava.

— Sim, mas elas têm a semana inteira para comprar.

Amara desembesta a falar, contando-me sobre o movimento da loja, perguntando sobre as meninas e meu pai. Depois volta a falar de sua loja, dos seus pais, do clima e todo tipo de assunto. Ela emenda uma frase na outra sem ao menos respirar.

— Não acredito que ele teve coragem de me dizer isso, logo eu que cuido de tudo com tanta dedicação. Não acha um absurdo? — averígua ela.

— O quê? — Distraída, não ouvi os últimos dez minutos de conversa.

— Credo, Pilar! Você me ouviu?

— Desculpa, estava pensando na obra.

— Falando em obra, e o engenheiro onde está?

Volto meu olhar para Zander que sorve mais uma dose. Duvido que ainda estejam lhe dando licor, talvez seja a cachaça com melaço de cana de Môa.

— Está sentado com os homens — respondo, sem apontar para ele.

Amara examina homem a homem, até que um deles lhe chama a atenção.

— Não vai me dizer que é aquele de barba e cheio de músculos?

— É ele — afirmo, comprovando que Zander se destaca entre os outros.

— Não sei se vou conseguir dormir esta noite ou em qualquer outra noite depois dessa visão — murmura com os olhos grudados nele.

— Que exagero, Amara.

— Exagero? Já deu uma boa olhada nos homens da região? Nunca se perguntou por que ainda estamos solteiras? — indaga, cutucando-me com o cotovelo.

— Tenho meu pai, minhas irmãs, a fazenda, não tem espaço para um namorado nesta lista, não tem nada a ver com os homens da região.

— Pois eu estou porque nunca encontrei um homem lindo como esse em Maria da Fé.

— E vai fazer o quê? Vai até lá perguntar se ele quer seu marido? — investigo, revirando os olhos e desdenhando de sua reação.

— Posso? — Ela solta os cabelos que tinha acabado de prender, jogando-os para o lado e fazendo uma pose sexy com a cabeça.

— Deus do céu, Amara! — começo a rir quando vejo o biquinho em seus lábios.

— Jura que não reparou que o homem é supergato, Pilar?

— Ele é bonito — falo, como se não fosse nada.

— Bonito é o Braga quando se arruma para ir trabalhar. Ele — aponta na direção de Zander com o queixo — é lindo. Adoro esse estilo rústico chique dos homens da capital.

— Não é muito diferente dos homens daqui — asseguro, mesmo sabendo que é mentira.

— Pilar, tome aqui que você está precisando. — Ela remexe em sua bolsa e me entrega seus óculos de leitura. Uma gargalhada me escapa fazendo com todos me olhem.

— E o Dino? — questiono quando me recomponho e ninguém mais me encara.

Ela fecha os olhos e aperta o topo do nariz. Amara e Dino tiveram um breve romance no começo do ano, tão breve que não durou mais do que algumas horas durante a festa de réveillon. Contudo, isso não o impediu de ficar caído por ela e, desde então, tentar engatar um namoro de verdade.

— Quando esse homem vai entender que não quero nada com ele? Se eu soubesse que não me deixaria em paz, nunca teria bebido naquela festa e muito menos o teria beijado.

— Gosto do Dino, ele é bacana.

— Não disse que ele não é bacana, só não quero namorá-lo — declara, ajeitando seus cabelos para que ganhem ainda mais volume. — Você não vai me apresentar o grandão da capital? — Ela se levanta num sobressalto, puxando-me pela mão em direção aos rapazes.

Os homens nos dão espaço quando estamos a poucos passos de distância, Môa puxa duas cadeiras para que nos sentemos com eles.

— Patroa, vai beber o quê? — Môa pergunta.

— Trouxe cachaça com melaço de cana?

— É pra já, patroa. — Ele passa a mão numa garrafa apoiada num tronco de árvore e serve uma dose para mim e outra para Amara.

— O engenheiro disse que a fábrica nova vai ficar igual às fábricas da capital, vamos comemorar bebendo muito hoje. — Môa ergue seu copo, incitando um brinde coletivo que é bem recebido por todos. Eles batem seus copos uns nos outros, derrubando um pouco da bebida pelo chão.

Amara me cutuca, lembrando-me de apresentá-la a Zander.

— Essa é Amara, Zander. Minha amiga desde a infância.

— Oi, Zander! — diz ela, batendo seu copo no dele que a cumprimenta com um aceno de cabeça. — Todo mundo ansioso com a fábrica, os produtores da cidade não falaram de outra coisa na última semana. Você é engenheiro na capital? Acho incrível como conseguem construir prédios tão altos. Já fez muitos prédios?

Zander entreabre os lábios, mas fecha em seguida, pensando no que dizer.

— As obras que fiz foram enquanto servia ao exército — responde ele, após uma pausa.

— No exército? — Môa investiga, surpreso.

— Eu era das forças armadas até… até pouco mais de um ano.

Suria também está na roda, ela observa Zander e os outros em silêncio.

— Forças armadas? Você era um soldado? — Joaquim entra na conversa.

— Primeiro-tenente.

Amara me cutuca nas costelas mais uma vez, lanço a ela um olhar enviesado. Vou acabar com hematomas se ela continuar a enfiar esse cotovelo em minhas costelas.

— Pensei que era engenheiro? — continua Joaquim.

— Sou engenheiro e primeiro-tenente.

Zander não aparenta querer falar mais que isso, ele desvia seus olhos de nós a cada novo questionamento. E embora eu esteja tão curiosa quanto os outros, tento me controlar e não participar da avalanche de perguntas. Suria sabe de tudo isso, mas nunca falou comigo a respeito.

— Nunca conheci alguém do exército — ressalta Amara, encantada. — Você está de licença? Vai voltar quando a obra acabar?

— Eu…

— Por que estão fazendo tantas perguntas? — interponho a favor de Zander ao vê-lo vacilar encarando o copo vazio em suas mãos.

— Estamos conversando, patroa — rebate Joaquim, erguendo seu copo acima da cabeça.

— Não vou voltar. — Zander ergue a cabeça e responde.

— Oras e por quê? — pergunta meu pai, embarcando na conversa. Zander hesita por quase um minuto, deixando todos à espera de sua próxima fala. Até que sua mão desce até a barra de suas calças e ele, lentamente, mostra sua prótese e o motivo de não estar mais no exército.

Os que ainda não sabiam de sua condição levam as mãos à boca ou arregalam os olhos.

— Desculpe, eu não sabia… — Amara me afronta com um olhar que diz: “por que não me avisou?”

Tentando disfarçar, todos param de lhe fazer perguntas e começam a conversar sobre outros assuntos. Zander constrangido, mal levanta a cabeça.

— Como aconteceu? Como perdeu sua perna? — Impensada, solto a questão fazendo com que todos se voltem para mim.

Eles começaram com as perguntas e quando Zander mostrou sua perna, agiram como se tivessem visto um homem de outro mundo, deixando-o afligido e cabisbaixo. Não ter uma perna pode nos fazer diferentes fisicamente, mas não é isso o que importa. Ninguém é igual a ninguém, ninguém é diferente de ninguém. Essa mudança brusca no rumo da conversa dá a entender que Zander é tão diferente de nós que o assunto deve ser ignorado.

Ele ergue a cabeça e analisa cada parte do meu rosto antes de dizer:

— Numa missão de salvamento. O prédio ruiu sobre mim.

— Caramba, sério? Então você é um herói — decide Joaquim.

— E como foi que isto aconteceu contigo? — meu pai investiga.

Zander não responde a eles. Ele não desvia seus olhos dos meus, como se esperasse pela próxima pergunta que farei, como se somente eu tivesse permissão para lhe fazer tais questionamentos.

— Você salvou pessoas? — pergunto.

— Trinta e duas.

— Senhor Jesus! — exclama Môa, apertando suas mãos calejadas da lavoura.

De repente, nenhum deles abre a boca para perguntar ou expressar mais nada e percebem que a conversa agora é entre Zander e eu.

— Foi assim que perdeu sua perna? — Meus olhos se direcionam para a perna que lhe falta, e a pergunta que faço soa mais como uma afirmação. Zander assente com a cabeça.

O silêncio continua, ninguém diz nada, mas sinto cada par de olhos sobre nós.

— Era o meu trabalho — sussurra.

— Agiu de maneira heroica, seu trabalho era admirável se salvou tantas pessoas.

— Era. No passado — Zander se levanta e vai em direção ao olival, sumindo entre as árvores.

— O que foi isso? — Amara murmura, agitando as mãos em minha direção e na de onde Zander estava sentado. Não respondo e me levanto para ir atrás dele.

Ando por minhas oliveiras, cruzo de uma à outra apoiando as mãos nos troncos procurando por Zander. A expressão em seu rosto ao dizer que seu trabalho está no passado se assemelhou a de quando sentia dor, era o mesmo semblante perdido e sem destino.

Continuo a me embrenhar pelas árvores que se abrem numa linda florada. Estou cada vez mais longe da casa e ainda assim não o encontro.

— Para onde ele foi? — pergunto-me.

Escolho parar de procurá-lo. Talvez seja melhor deixá-lo sozinho. Eu não sei a razão de me sentir tão compelida, eu mal o conheço e ainda assim estou procurando por ele, querendo ajudá-lo, entendê-lo, ouvi-lo, como se ele fosse meu polo oposto — atraindo-me para si.

Fecho os olhos e suspiro, pronta para sair do olival. Mas antes que eu dê o primeiro passo, sinto um toque suave em meu braço, viro-me e o vejo.

— Você saiu sem dizer nada, eu não sabia se… — Irrita-me que as frases saiam sempre incompletas quando falo com ele.

— Gosto de andar por elas. — Ele sinaliza as oliveiras com uma expressão mais suave do que quando se levantou da roda de conversa.

— Mesmo se eu conhecesse todos os países, esse aqui ainda seria o meu lugar preferido no mundo — digo, tocando o tronco de uma das minhas árvores.

— Eu conheço muitos lugares, então posso dizer que você tem razão. — Enxergo o vislumbre de um sorriso atravessar sua face, o primeiro desde que o conheci.

Andamos lado a lado entre as centenas e centenas de oliveiras, todas floridas e carregadas, esperando o momento certo da colheita. O dia passou tão rápido que o céu começa a ganhar contornos alaranjados que deixam a paisagem ainda mais bonita, é como se o olival fosse tingido pelas cores do céu.

Caminhamos em silêncio, ouvindo apenas o farfalhar das árvores e o cantar das cigarras até que um novo som chega aos nossos ouvidos. A canção que ecoa é alegre e ritmada.

— Môa e Joaquim abriram a cantoria — digo, quando noto o olhar confuso de Zander.

Mudo a direção de meus passos e Zander me acompanha. Nos fundos da minha casa encontramos Môa com sua viola e Joaquim com o acordeom. João, o mais novo comprometido da fazenda, entoa a primeira canção. Ele é sempre o primeiro a cantar para depois o microfone revezar por outras mãos. Dona Gertrudes, agora sua principal fã, bate palmas e mexe os quadris ao som da música.

Quando me vê, Amara acena com uma mão para que eu vá a seu encontro, Suria faz o mesmo com Zander.

— Onde estavam? — indaga com as sobrancelhas elevadas.

— Andando entre as oliveiras. — Não dou detalhes do que falamos e saio para pegar uma bebida.

Amara semicerra os olhos e cruza os braços. Tento evitá-la sabendo onde a conversa pode chegar.

— Você está interessada nele, Pilar? — Ela lança o questionamento sem pestanejar, parando à minha frente para não me dar espaço para fugir.

— Pare de inventar coisas, Amara.

— Você está interessada nele. — Ela ignora uma possível resposta e afirma usando suas mãos para marcar cada palavra da frase.

— Eu mal o conheço, Amara. — Volto a me sentar e sorvo uma dose da minha bebida, focando meu olhar em Môa e Joaquin. Mas Amara não se dá por satisfeita.

— Conheço bem essa sua cara, Pilar. É a mesma de quando gostava do Julião no colégio, e mentia para todo mundo dizendo que não.

— Você está impossível hoje, sabia? — Levanto-me, saindo em direção à cozinha, passo por Pina e Pietra que se agarram às minhas pernas, antes de continuarem a dançar com suas amigas.

Amara me escolta.

— Achei que você tinha se tornado um robô programado para não se apaixonar. Será que eu me enganei? — diz de forma afetada se sentando numa das cadeiras na cozinha.

— Não sou um robô, Amara. Mas tenho outras prioridades além de namoros. Tenho duas irmãs para criar, um pai, uma fazenda… — elenco meus motivos, desta vez usando os dedos da minha mão para ilustrar melhor. — Além do que, desde Ávila não me interessei por ninguém.

Abro a geladeira, puxando uma garrafa com água para encher um copo e beber.

— Cuidado para não queimar a língua, vai ficar difícil de usá-la quando for beijá-lo — diz, enrolando no dedo um de seus cachos vermelhos.

Cuspo a água, molhando a mesa e Amara que apanha um pano e começa a passar pelo rosto.

— Caramba, precisava disso?

— Para de brincadeira, Amara. Zander vai trabalhar para nós, pare de idealizar o que não existe.

Ela deixa o pano de lado e antes de sair me olha por sobre os ombros.

— Quer enganar quem, amiga? — Ela pisca um olho e sai.

— Não estou me enganando — murmuro, saindo da cozinha e voltando para a cantoria.

Pisco meus olhos várias vezes quando vejo Suria e meu pai dançando juntos. Os dois giram ao som da canção, ele a conduz com uma das mãos em sua cintura. Não o vejo dançar há muito tempo, desde que minha mãe morreu esses momentos são raros.

Outros casais se juntam e uma grande roda de dança se forma. Volto a me sentar ao lado de Amara, que sinaliza Zander com a cabeça, indicando que eu o tire para dançar.

— De jeito nenhum — protesto.

Mas quando é que Amara escuta o que digo? Nunca! Ela pisca um olho e se levanta, marcha em direção a Zander e lhe diz algo ao pé do ouvido, depois aponta com um dedo para mim. Amara pensa que estamos no baile de formatura do colégio? Zander não tem reação, ele permanece no lugar, porém com os olhos fixos em mim.

Sinto meu rosto queimar. Minha vontade é sair correndo, mas que patética eu seria se o fizesse. Parecendo uma adolescente envergonhada diante de uma paquera. Paquera? No que estou pesando?

No entanto, no meio das minhas divagações, faço algo muito mais constrangedor.

Entro na roda de dança, afasto Dona Gertrudes de João e começo a dançar com ele. Acanhado, o homem se atrapalha nos passos. Dona Gertrudes apoia as mãos na cintura e me encara com o cenho franzido.

— É só por uns minutos — aviso a ela, enquanto giro meu corpo abraçado ao do João. — Eu já te devolvo ele. Eu juro! — complemento, dando mais um giro.

Deus do céu, a que ponto eu cheguei? Enquanto tento coordenar meus passos aos de João, noto Amara e Zander me observando sem ao menos piscar seus olhos.

— Menina, que bicho te mordeu hoje? — indaga Dona Gertrudes assumindo seu posto assim que a música termina.

Afasto-me deles para me sentar ao lado oposto de Zander e Amara. Abro uma lata de cerveja e sorvo o líquido quase todo numa única golada.

— Você me surpreende a cada dia — murmura Amara, parando ao meu lado.

— Eu vou me vingar de você, Amara. O que disse a ele?

— Que você queria dançar e não tinha um par.

— Estamos no colégio? Somos adolescentes? — Sorvo o restante da cerveja, abrindo outra lata.

— Só adolescentes dançam? — refuta, assinalando os casais com mais de sessenta anos de idade que dançam neste exato momento.

— Você me entendeu.

— Ele disse que não sabe dançar, mas deve ter mudado de ideia quando viu você com o João.

Môa e Joaquim mudam o ritmo da música, uma mais calma começa a tocar e os casais se abraçam e devagar mexem seus corpos de um lado para o outro.

— Essa música é para a mulher que vai transformar a produção do azeite em Maria da Fé. É especial para nossa patroa e para o engenheiro que vai construir a nova fábrica. Venham os dois aqui para dançar essa moda de viola com a gente — anuncia Joaquim no microfone.

Uma descarga de adrenalina inunda meu corpo fazendo minhas pernas estremecerem e meu coração acelerar. Uma sensação estranha que há muitos anos eu não sinto.

— Imagina, não precisa de música... — digo, implorando que não foquem em mim.

Mas meu plano de me manter oculta vai por água abaixo. Zander se levanta e vem em minha direção. Sem olhar para mais ninguém, ele vem numa linha reta até estar na minha frente.

— Pronto, o parceiro da patroa chegou! — Joaquim avisa e começa a entoar os primeiros versos da música.


Meus pensamentos Tomam formas e viajo Vou pra onde Deus quiser


Quero que um buraco se abra sob meus pés agora mesmo. Sinto o ar desaparecer assim que uma das mãos de Zander se coloca suavemente sobre minha cintura. Ele se move devagar, no seu próprio ritmo, como se o compasso ditado pela música pouco importasse. Na verdade, eu também ignoro a cadência. Apoio as mãos em seus ombros e dançamos nossa própria música.


Um videoteipe que dentro de mim Retrata todo o meu inconsciente De maneira natural Ah! Tô indo agora

De repente, uma roda é criada em torno de nós onde todos assistem e se balançam. Zander não desvia seus olhos, sua face é uma incógnita impossível de se ler. O que ele está pensando? Meu coração bate descontrolado enquanto eu clamo em silêncio que ele não perceba o que acontece comigo.


Pra um lugar todinho meu Quero uma rede preguiçosa pra deitar Em minha volta sinfonia de pardais Cantando para a majestade, o sabiá A majestade, o sabiá


A música termina e todos batem palmas acaloradas. Mas, por algum motivo, nós não paramos de nos mover. Como se a canção que nos embala não fosse tocada por Joaquim, mas por nós mesmos.

 
 
 

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