top of page

Capítulo 13


Zander



Faz duas semanas que todos os dias ao acordar Pilar é a primeira pessoa que me vem à mente. O aroma frutado de sua pele está impregnado em minhas narinas como se eu tivesse derrubado o vidro de seu perfume em meu quarto e saturado tudo com sua essência. Não consigo parar de pensar no que aconteceria caso tia Suria não entrasse no quarto naquele domingo.

Teríamos realmente nos beijado? Eu acho que não. A maneira intempestiva como agiu, deixando as meninas e eu sozinhos na praça é a resposta para essa pergunta.

Mas quem eu acho que sou para pensar num sim de Pilar? Um homem perdido, sem eira nem beira, incapaz de dar um jeito na própria vida.

Afasto os lençóis e meus pensamentos divagantes. A obra começa hoje e é melhor esquecer a insensatez dos meus atos naquele final de semana. Meu objetivo nesta cidade é terminar a obra no prazo e voltar para casa.

Quando pronto, saio à procura da minha tia. Encontro-a dormindo. O ressonar mostra que não acordará tão cedo. Ela disse que me levaria até a fazenda, mas decido não a acordar. Guardo o projeto no tubo telescópico pendurando-o em meu ombro junto à bolsa com meu laptop e parto em busca de transporte.

A praça da igreja é o ponto central da cidade, observo alguns carros estacionados com pessoas por perto e vou até eles para buscar informação. Dizem-me que não há táxis, somente os coletivos que passam a cada duas horas, ou os motoristas particulares — uma espécie de condução alternativa que abastece a minúscula cidade de Maria da Fé.

Espero pelo tal carro particular por uns trinta ou quarenta minutos, não só eu como outras pessoas que precisam transitar entre as fazendas que rodeiam a região. No carro, com mais quatro trabalhadores espero minha vez de ser deixado em frente à Villa Oliva. Antes de sair, entrego o valor cobrado pelo motorista e marcho até a porteira da fazenda.

Quando chego a sede, a porta principal aberta é como um convite para entrar.

— Pilar — chamo-a da porta. Seu pai aparece com um imenso sorriso à medida que ajeita na cabeça um enorme chapéu de palha mexicano.

— Bons dias, gajo! Pilar está a levar as miúdas para o colégio e a comprar insumos para a fazenda. — Ele chega até mim e estende a mão para me cumprimentar. — O engenheiro está cá, Gertrudes! — anuncia em alto tom.

Gertrudes aponta a cabeça além do batente da cozinha e sorri.

— Venhas beber uma bica[1] e comer bolo de milho. Não podes começar sem isto.

Acompanho o pai até a cozinha e me sento numa das cadeiras.

— Todos estão roendo as unhas, ansiosos para a obra começar — diz Gertrudes, colocando uma caneca com café à minha frente.

— As pessoas desta cidade estão a exagerar — rezinga Martim, mastigando bolo.

— Seu velho ranzinza, sabe bem como o crescimento de Villa Oliva vai ajudar os produtores.

— Oras, acho bom que Pilar tenha razão ou teremos problemas, Gertrudes. Problemas! — ele entona a última palavra como se esperasse pelo pior.

— Cruz credo, que homem agourento! — Gertrudes dá de ombros e fecha a cara. — Não dê bola para o que esse agoureiro diz, Zander. Vocês vão fazer um bom trabalho. — Ela junta as mãos em sinal de fé.

Ouço o chão de madeira da sala guinchar com passadas fortes.

— Preciso que inspecione as oliveiras do norte, você disse que faria a vistoria on… — Pilar entra na cozinha e se cala assim que me vê sentado à sua mesa.

— Miúda gritalhona, não vês que estou com meu chapéu para passar o dia nos campos — expõe Martim, passando as mãos no imenso chapéu.

— Bom dia — fala ela se aproximando.

Respondo com um aceno.

— Vou trocar de roupa e descemos para a fábrica — completa Pilar.

— Tome um suco de goiaba antes, menina. — Gertrudes entrega a ela um farto copo que Pilar entorna numa golada.

Quando volta, usa uma camisa xadrez e um par de galochas pretas nos pés. Ela tem um ar simplista, rural, ninguém diria que é dona de toda esta terra e que há tanta gente dependendo do seu trabalho.

Ela dirige por entre o olival até estar em frente à área de terra onde construiremos a nova fábrica.

Os homens que aguardam para o trabalho se aproximam do carro.

— Patroa, estamos esperando suas ordens — diz um dos homens.

— Será o Zander quem dará as ordens. Ele cuidará de tudo relacionado à obra. — Pilar aponta para mim. Os homens concordam. Reconheço alguns da confraternização que participei alguns sábados atrás.

— Tem gado da fazenda vizinha entrando nas nossas terras por uma cerca que arrebentou, preciso resolver isso e volto aqui depois, tudo bem? Todo o material que me pediu para comprar está aí. Madá — ela aponta para o alojamento próximo da fábrica atual —, prepara o almoço para todo mundo durante a semana, lá também tem um vestiário com água e banheiro.

Concordo com a cabeça. Ela me encara como se quisesse falar mais, mas não diz.

— Então… vou indo — finaliza, seguindo para sua caminhonete.

Calados, os homens esperam meu comando. Reflito sobre como me dirigir a eles, lembrando da minha vida militar e dos aspirantes que eu capitaneava. Repasso que aquela vida não existe mais. Aqui fora não há hierarquia, estamos todos na mesma classe.

— Eu sou Zander, engenheiro da obra. Gostaria que se apresentassem antes de começarmos.

Um a um dizem seus nomes e se já trabalham na fazenda ou se são da construção civil. Quando todos estão devidamente apresentados, abro o projeto sobre um cavalete e passamos um bom tempo debruçados sobre ele, eles visualizam nas folhas como ficará a obra no terreno vazio. Por fim, o trabalho começa. E mesmo que eu não tenha a mesma habilidade motora que eles, ajudo a carregar tijolos, areia e cimento. Além de fazer as marcações no chão, indicando onde será cada divisão da nova fábrica.

— O almoço está pronto! — Madá surge com um lenço na cabeça, acenando para irmos ao seu encontro.

Todos deixam os tijolos de lado e seguem para se limpar e comer. Sentamo-nos juntos, fazendo-me recordar de quando eu comia com meu batalhão. Eles conversam animados, falando sobre suas famílias, seus roçados de milho, feijão e sobre o trabalho na fazenda de Pilar. Fico atento ao que dizem, procurando entender mais sobre esse estilo de vida tão distinto do meu.

Minha tia telefona para saber como estou e reclama por eu não a ter acordado, diz também que tem uma consulta médica em outra cidade, mas para eu esperar na fazenda até ela voltar. A tarde passa tranquila com todos trabalhando. Sinto-me com uma vitalidade que há muito não sentia, a sensação de ser útil mais uma vez.

O final do dia chega e uma van encosta próxima à atual fábrica.

— Chefe, a gente para às cinco, não é? — perguntam-me.

— Sim — respondo. Os homens denotam cansaço e se despedem seguindo para trocar de roupa no alojamento e entrarem na van. Eu volto para o meio do terreno conferindo cada uma das medidas para que não haja retrabalho amanhã.

Quando o último fio de sol desaparece no horizonte e não há iluminação suficiente para continuar, guardo o projeto pendurando-o no ombro junto da bolsa. Só então me dou conta de que daqui à sede é uma boa distância e, ainda que eu possa andar até lá, é dolorido para alguém que passou todo o dia de pé com uma prótese.

Penso em ligar para Pilar, mas ela não apareceu o dia todo. Imagino que seu dia deva ter sido cheio e a última coisa que precisa é receber minha ligação pedindo carona. Ligo para minha tia, mas o telefone entra direto em caixa postal.

Dou-me conta de que estou sozinho no meio dessa imensa fazenda.

Com a luz do celular iluminando meus passos me guio pela claridade distante da sede, sendo acompanhado pelo zumbido agudo do canto das cigarras. É mortificante saber que o homem que fui jamais se importaria em ser solto sozinho numa mata fechada para andar por quilômetros. Mas, o homem que sou hoje, está reaprendendo a andar e, como uma criança desprotegida, tem que depender dos outros para ir e vir.

Preciso parar algumas vezes durante o trajeto porque os músculos da minha coxa e a pele onde a prótese está encaixada começam a queimar. Sento-me no chão, com medo de que essa queimação evolua para aquela dor. Passo as mãos pela perna esperando que o ardor desapareça rápido e eu possa continuar.

Ouço um ronco de motor e logo um carro entra no meu campo de visão projetando suas luzes em minha direção. Protejo os olhos com uma mão até ele parar.

A voz das gêmeas ecoa.

— A gente pensou que você tinha ido embora — diz Pietra vindo a mim.

— Por que está sentado no chão? — indaga Pina, sentando-se também. Ela tira o projeto que carrego nos ombros e o coloca nos dela, tentando entender para que o tubo serve.

— Suria não vem? — pergunta Pilar, parando à minha frente. Ela tem os fios soltos e molhados, indicando que acabou de tomar banho. Diferente das galochas que usara pela manhã, agora exibe uma bota de couro estilo caubói, um vestido florido e uma jaqueta jeans.

— Foi ao médico. Eu estava indo para a entrada esperar por um motorista particular.

— Os motoristas não passam agora, já é noite — esclarece Pietra.

— Eu levo você — avisa Pilar, acenando com a mão para eu me levantar.

— Tem algum circular? — questiono, levantando-me.

— Não percebeu que por aqui não passam ônibus? — alerta Pina, devolvendo-me o tubo.

— Levo você para casa — repete Pilar.

Que tipo de cidade não tem ônibus ou táxis e todos param de trabalhar com o pôr do sol?

— Eu deveria ter pegado a van?

Alguns segundos de silêncio recaem sobre nós até a voz de Pilar quebrar a calada:

— A van não vai ao centro, Zander — pondera Pilar. — Onde Suria está?

As três irmãs me fitam com comiseração. Sinto-me imprestável perto delas, da minha tia, dos meus pais… O sentimento é asfixiante e mostra como eu realmente estou abaixo de todos eles. Pilar deve estar achando que terá de me trasladar todos os dias, assim como faz com as gêmeas para a escola.

Pietra segura minha mão.

— A cidade é pequena, não é igual à capital — expõe ela, como se lesse meus pensamentos.

— Por que você não mora aqui na fazenda? Na casa que era do Azevedo? — acrescenta a desprendida Pina, agora remexendo a bolsa do meu laptop. — A casa está vazia, aí não precisa ficar esperando alguém te buscar — finaliza, entretida com o conteúdo da bolsa.

— Pina, você teve uma ótima ideia. O que é inusitado e interessante. — Pietra leva uma mão ao queixo avaliando a proposta de sua irmã. — A casa do Azevedo fica dentro da fazenda. Ela era do nosso primo, mas ele foi estudar nos Estados Unidos. Você pode usá-la, Zander.

[1] Café.

 
 
 

Posts recentes

Ver tudo
Sem Destino - capítulo 37

Pilar Uma vez li que: enquanto sonhamos fazemos o rascunho do nosso futuro. É por isso que nunca tive medo de sonhar alto, o mais alto...

 
 
 
Sem Destino - capítulo 36

Zander - 4 meses depois De sua poltrona Camile me observa com seriedade, seus olhos não se movem em nenhuma outra direção que não seja...

 
 
 

留言


bottom of page