Capítulo 14
- Dani Assis
- 11 de nov. de 2021
- 12 min de leitura
Zander
Como tantas vezes fiz, encaro este espaço como a mudança de um regimento. Assim como era no exército, a casa tem poucos móveis e objetos, impessoal e com nada que indique como era a pessoa que aqui vivia. Penso que não será diferente comigo, quando eu sair ninguém perceberá que um dia estive neste lugar.
Desde que passei a viver aqui — duas semanas atrás — pouco dormi. Talvez pelas molas soltas do velho colchão que espetam minhas costelas a cada mexida na cama, ou quem sabe eu esteja desesperado para acreditar que me mudar para a fazenda de Pilar era o certo a fazer. E embora ela tenha recusado receber, chegamos a um acordo sobre o valor do aluguel que pagarei até o fim da obra.
O sol desponta e me banha na cama, mas antes de me levantar observo a paisagem através da janela, a plantação orvalhada pela noite. Saio da cama e resolvo me exercitar, uso meu peso para fazer flexões, prancha e abdominal sentado já que minha estação de musculação permanece na minha tia.
Depois de tomar banho e me vestir, preparo o café da manhã. Enquanto mastigo, ouço os pássaros em voo sobre o olival. Os sons da natureza me dão bom dia parecido com quando eu treinava na mata. Tirando esses sons, o silêncio reina neste pedaço de terra. A fazenda de Pilar é grande e mesmo vivendo dentro de sua propriedade, não vejo sua casa daqui.
A sensação é a de estar numa choupana isolada do mundo.
A casa não tem televisão nem rádio, minha distração são os livros que trouxe na bagagem e os jogos no meu celular. E mesmo que essa casa pareça impessoal, isolada e desconfortável, é a primeira vez desde que saí do exército que me sinto verdadeiramente bem num lugar.
Sento-me num tronco partido nos fundos da casa para atender a chamada de Camile.
— Bom dia, Zander — diz ela, com seu clássico entusiasmo. — Já se acostumou a nova casa?
— Sim. — Giro o celular exibindo a ela um pouco da vista verdejante.
— Que lugar bonito. E como está sendo viver sozinho?
Quando estamos em chamada, raramente relanço pela tela. O aparelho está sempre seguro à minha frente, mas meu olhar permanece para o chão.
— É bom — digo, simplesmente.
— Qual a sensação? — persiste ela, tentando mais que respostas monossilábicas. — É como ser dono de si outra vez? — complementa.
— Parecido com isso.
— Prefere a casa dos seus pais ou da sua tia?
— Prefiro aqui — confesso, sabendo que esta não era uma das opções dadas.
— Sente-se autônomo outra vez?
Concordo com a cabeça.
— Isso é um sim, Zander?
— Sim — profiro.
— Você deve andar bastante pela fazenda, imagino que sua adaptação à prótese esteja progredindo rápido.
— Está melhor.
Meu caminhar não é mais tão lento que o dos outros, não fico para trás com tanta facilidade e, meu medo de desequilibrar diminuiu também. A única coisa que temo é a dor retornar. Não disse a Camile sobre elas.
— Estou feliz por você, Zander. Tenho certeza de que... — Camile hesita por um instante e eu relanço pela tela. Ela ergue o dedo e aponta para além de mim. — Você tem visita?
Giro o corpo e encontro Pilar encarando meu celular. Surpreso com sua chegada silenciosa demoro para cumprimentá-la. Pilar se desculpa e sai apressada.
— Posso desligar? — pergunto à minha psicóloga.
— Sim, mas é interessante que não tenhamos interrupções nas próximas sessões — diz Camile, encerrando a chamada. Encontro Pilar na entrada da casa com o olhar perdido para suas oliveiras e as mãos atrás do corpo.
— Oi! Quer falar comigo? — pergunto.
— Não sabia que você estava ocupado. — Ela me encara com uma expressão lânguida e aponta para o meu celular.
— Não estava. — Enfio o aparelho no bolso dos meus jeans.
— Eu estava passando, não é nada importante. — Pilar não me dá tempo e sai acelerada.
Sou pego por uma sensação esquisita, é como se eu tivesse feito algo de errado, mesmo não sabendo o quê. Volto para pegar minhas coisas e sigo para a obra.
— Preparem mais massa, vamos reforçar a fundação — aviso aos homens.
O trabalho é pesado, agradeço que o clima montanhoso de Maria da Fé seja ameno e o sol não nos castigue. Essa é uma das partes mais cansativas; são quilos e mais quilos de concreto para garantir a estrutura da obra. E mesmo que eu esteja ocupado com o trabalho e a falação dos homens, passo todo o tempo pensando em Pilar e na forma abrupta como partiu mais cedo. Foi semelhante quando saiu do meu quarto naquele domingo em que quase a beijei.
Perto do fim do dia, Pilar aparece, mas não vem até nós. Ela nos observa à distância, perto dos alojamentos. Seu comportamento está estranho e oposto ao de ontem, quando acompanhou o trabalho comigo por várias horas seguidas.
O dia termina e eu caminho de volta para casa. Ando por entre as oliveiras antes de entrar, elas me trazem uma serenidade que habitualmente não tenho. Os anos nas forças armadas eram austeros, rigorosos e momentos de relaxamento não existiam.
Mas aqui, quando a noite chega, é tudo tão sossegado, quieto.
Elevo a cabeça e inspiro longamente deixando que o aroma das oliveiras invada minhas narinas e pulmões. Esse perfume é tão parecido com o de Pilar que eu mal consigo dissociar uma coisa da outra.
Em casa, repito a rotina de colocar a cadeira de banho sob o chuveiro, tirar prótese e a joelheira de silicone. A água quente bate contra a minha pele e desfadiga os músculos cansados, além de abrandar os pensamentos vagos em torno de Pilar. Mesmo tentando evitar, ela sempre volta à minha mente e eu não entendo a razão.
A noite avança acompanhada de uma neblina que derruba a temperatura. Aqueço um dos pratos que tia Suria me deixou em sua última visita e me sento para comer nos degraus que dão para os fundos da casa. A lâmpada sobre a pequena varanda ilumina poucos metros adiante, além disso, não é possível enxergar nada.
Depois de comer me mantenho sentado encarando o nevoeiro. O aroma das oliveiras é acentuado durante à noite. É como se ele vertesse na corrente de ar e circundasse toda a fazenda, enlaçando-me nesse bálsamo que passou a ser o meu preferido. Fecho os olhos e aprecio o perfume até ele se tornar tão forte ao ponto de eu achar que estou ficando louco e obcecado pelo cheiro de Pilar.
Isso não pode ser normal.
Abro os olhos para me afastar desse efeito e descubro a razão da fragrância ter se tornado tão intensa. Pilar me observa em silêncio, agarrada as laterais do seu casaco de lã.
— Eu te assustei? — pergunta ela, erguendo uma mão. — Parecia que estava meditando, então não quis...
— Só estava pensativo — digo, levantando-me para entrar. Ela continua parada. — Aconteceu alguma coisa?
— Não! Eu...
— Estava passando? — completo, repetindo o mesmo que ela me disse pela manhã. Pilar desvia o olhar e se fecha ainda mais dentro de seu casaco de lã. Arrependo-me imediatamente da tentativa fracassada de criar uma piada e tento consertar. — Você quer um chá?
Pilar reflete estudando meu rosto antes de aceitar.
— Está gostando daqui? Se quiser mexer em alguma coisa, deixar do seu jeito — diz ela, arrastando uma cadeira para se sentar, enquanto coloco a chaleira com água no fogo.
— Está do meu jeito — respondo, de costas para ela. Ela silencia e talvez não tenha entendido o que eu quis dizer. — No exército nos acostumamos a ter somente o que podemos carregar. Então esta casa está ótima assim, o essencial sempre me bastou.
Entrego uma xícara a ela e completo com água quente. Pilar balança o saquinho com a erva para cima e baixo até que a infusão esteja do seu agrado.
— Pina me disse que quer te mostrar uns desenhos que fez, disse que só vai mostrar a você.
— Ela é boa em desenhos? — Sentado diante dela, sorvo um gole do meu chá.
— É excelente! Não duvido que se torne desenhista quando adulta. — Pilar fala da irmã como uma mãe orgulhosa faz com os filhos.
Nenhum outro assunto aparece. O silêncio é indigesto conforme focamos em nossas xícaras.
— Eu já vou. — Pilar toma o último gole de chá e coloca sua xícara vazia próxima da minha.
— O que queria me dizer pela manhã? — pesquiso, levantando-me também.
Ela abre e fecha a boca, indecisa no que dizer.
— Uns detalhes da obra, nada importante.
— Quer olhar o projeto? — Com o olhar ela acompanha minha mão direcionando às folhas abertas logo adiante, na mesa de centro da sala.
— Não precisa! — Ela dá mais um passo em direção à saída.
Aquela sensação de que fiz algo errado retorna, então decido perguntar de uma vez.
— Fiz algo de errado?
— O quê? Não!
— Parece que fiz. Só não sei o quê?
Ela foca no meu telefone sobre a mesa de centro.
— Não, você não fez nada — repete, resoluta.
— Então por que veio até aqui? Pela manhã e... agora?
Pilar umedece os lábios e desvia. É nítido que tem algo a me dizer.
— Eu... só queria mostrar uns equipamentos que encomendei e... — Ela segura uma mão na outra. — hoje de manhã, me desculpe por interrompê-lo com sua namorada.
— Namorada? — Demoro para entender e sorrio quando percebo que ela fala de Camile. — Ela não é minha namorada — esclareço.
— Não? — Pilar dá um passo à frente e aponta para o meu celular. — Vocês estavam numa chamada por vídeo...
— Só namorados fazem chamadas por vídeo? — questiono, de maneira honesta. Eu nunca fui bom nos códigos sociais, não tenho ideia se somente casais os façam hoje em dia.
— Na maioria das vezes, sim — assegura, ainda que soe indecisa.
Intrigado, passo a mão pelo rosto, escorregando por minha barba. Só namorados fazem chamadas por vídeo? Todo o meu batalhão utilizava-se dessa facilidade para conversar com suas famílias.
— Não fazia ideia — afirmo, cruzando os braços.
— Não?
— Achei que poderiam ser feitas para qualquer pessoa?
— Um homem e uma mulher numa chamada de vídeo, provavelmente são um casal, não acha? — Ela agora demonstra certa impaciência. O que me deixa incerto, Pilar está irritada por que Camile não é minha namorada?
— Está dizendo que homens e mulheres não podem fazer chamadas por vídeo?
Ela inclina a cabeça, assimilando minhas palavras.
— A questão é que precisa ter intimidade para uma chamada deste tipo, caso contrário faria uma ligação comum. — Ela leva uma mão até a orelha imitando o sinal de um telefone.
— Sim, acho que se pode dizer que Camile e eu temos intimidade — afirmo. Camile é minha psicóloga há um ano e talvez seja a pessoa que atualmente mais saiba sobre mim.
— Camile? — Pilar sussurra o nome, o semblante decepcionado. — Eu preciso fechar uns pagamentos para amanhã — fala rápido, indo em direção à porta.
— Camile é minha psicóloga.
Pilar me olha sobre os ombros antes de alcançar o primeiro degrau da varanda, prestes a desaparecer na bruma da noite.
— Minha psicóloga desde o acidente — completo. Ela entreabre os lábios e pouco a pouco retorna apoiando a mão no batente. Dou um passo para mais perto, sentindo minha respiração falhar com a simples ideia de ela ir embora achando que eu tenho namorada.
— Eu pensei que...
— Que Camile era minha namorada mesmo eu tendo dito na primeira frase que não? — Meu coração se acalma quando a vejo regressar para dentro da cozinha.
Nossos olhares se sustentam, mergulhados um no outro. Dividimos este momento, mas não sei se dividimos o mesmo desejo. Ela ergue uma mão e afasta o cabelo do rosto expondo-o todo para mim. Eu preciso buscar controle outra vez para não invadir seu espaço e descobrir qual o sabor que seus lábios entreabertos têm.
Eu queria um sinal, um rojão estourando no céu que me avisasse que posso estreitar a distância que nos separa e saciar esse desejo que cresce um pouco a cada dia dentro de mim.
— Zander... — sussurra ela, a voz melodiosa.
Um sinal.
Que sobrepuje a dúvida e desfaça a confusão na minha cabeça. Um sinal que me faça acreditar que Pilar não se importa com meu corpo disforme e, também queira me beijar. Ao menos, uma vez.
Um sinal.
— ...preciso ir — murmura ela, sem desviar os olhos dos meus.
— Um sinal — suspiro.
— Um sinal? — indaga ela, confusa. — Para quê?
— Para te beijar.
Fora deste cômodo a densa neblina resfrie o ar, mas aqui dentro eu o sinto tão quente quanto o meio-dia no deserto. Faz anos que não me sinto queimar deste jeito por uma mulher. E então o sinal vem, como o tiro de um sinalizador no oceano avistado a milhas de distância.
Pilar vem até mim, sinto sua respiração soprar a pele do meu pescoço. Seu perfume se mistura ao ar, ao meu desejo e ao medo que sinto de ser renegado por não ser mais como os outros homens.
— Eu também quero um sinal — sussurra e toca minha barba.
Essas são as últimas palavras ditas antes de nossas bocas colidirem.
Nossos lábios se movem timidamente no início, mas não demora para um invadir a boca do outro com vontade. Seu beijo tem sabor de hortelã com chá e é tão viciante quanto o aroma de sua pele.
Experimentando de todos os ângulos, nossas cabeças se movem de um lado para o outro. Minhas mãos descem até sua cintura e suas curvas se moldam com perfeição às minhas. Ela se agarra ao meu pescoço como quem se agarra a uma boia salva-vidas.
Separamos nossos lábios por poucos segundos, apenas para repor o ar. Seus dedos agora sobem por minha nuca e despertam cada parte adormecida em meu corpo.
Eu mal consigo ficar de pé.
Pilar deve sentir o mesmo calor, porque suas mãos me soltam e vão até seu casaco de lã fazendo-o deslizar por seus braços e cair no chão. De regata seus contornos são acentuados e se moldam ainda mais em mim. Minhas mãos se apoiam em sua cintura enquanto seus braços laçam meu pescoço e nossas bocas voltam a se mover uma na outra.
— Zander, eu acho que devemos parar. — diz ela, ofegante contra meus lábios. Pilar se afasta com as mãos no rosto vermelho pelo roçar da minha barba.
— Não vai me dizer que “isso foi um erro”, vai? — examino, igualmente ofegante.
Ela sorri ao mesmo tempo que busca ar.
— Não é isso, mas acho que devemos parar agora...
— Senão? — indago, o peito arfando.
— Senão não vou conseguir parar mais.
Ela me encara com os olhos em brasa.
— Isso é um problema? — pergunto, sorrindo e aceitando que ela não pare.
— Sim — afirma, num tom categórico que me faz hesitar. Como pode ser um problema entre um homem e uma mulher adultos? A não ser que o problema seja eu.
— Por quê? — questiono, mas Pilar se mantém em silêncio sem coragem de dizer que o problema seja realmente eu. Que idiota! Fui pretensioso em me deixar envolver por ela e achar que...
Decido em não a constranger mais e indico a porta para que saia.
— Quer que eu vá embora? — ela aponta para si.
— Não quero ser um problema para você, Pilar. Já sou um problema para gente demais.
Pilar alça seu casaco do chão, veste e sai da casa.
O vento frio invade a cozinha fazendo a temperatura cair tão rápido quanto subiu. Puxo minha camiseta pela cabeça e no quarto me solto sobre o colchão analisando as ranhuras no teto.
O que acabou de acontecer?
É a pergunta que me faço sem situar uma resposta decente, uma resposta que não envolva a vida fracassada que tenho. Se eu fosse o mesmo homem de um ano atrás ela diria tão enfática que ficar comigo é um problema?
Merda! Atiro o travesseiro na parede.
Não consigo pensar direito tendo ainda cada parte de mim carregada com o cheiro dela. Resolvo dar uma volta pelo olival, é a melhor maneira para esfriar a cabeça. No entanto, assim que saio da cama dou de cara com Pilar entrando no meu quarto.
— Não! Não é um problema. — Ela segura meu rosto e me beija impetuosamente. Não demoro para trazer seu corpo para junto do meu e retribui-la com a mesma voluptuosidade.
Se nosso primeiro beijo conflagrou como o fogo, este incinera como as lavas de um vulcão. Caímos sobre a cama que guincha com nosso peso. Minhas mãos se encaixam por entre seus fios, desesperado para que nenhum espaço se ponha entre nós. Ela se deita sobre mim e me mantém refém deste beijo lascivo e libidinoso. Arfo entre seus lábios ao sentir suas unhas deslizarem pela pele do meu tronco despido.
Estou ansioso, ansioso que ela não me julgue e não me deixe sozinho esta noite. Ela tira o casaco de lã novamente e, desta vez, a regata também é despida. Os seios retidos num conjunto de renda azul me fazem angustiado para tocá-la. Pilar leva as mãos até o cós dos seus jeans e seu olhar recomenda que eu faça o mesmo.
Pilar nota minha apreensão e me encorajando toca o metal que dá lugar à minha perna.
Esta é a primeira vez que fico com uma mulher desde o acidente. É intimidante revelar não somente a perna que falta, mas tudo ao redor dela; é horrível, grosseiro e cheio de marcas, não é o tipo de coisa que as pessoas escolhem olhar.
Solto o vácuo da prótese, confidenciando a ela o meu maior martírio. Ela resvala os dedos pela pele rugosa e feia. Seu semblante denota mais que pena ou compaixão, ela é empática a minha dor, a dor que vai além da física.
Pilar sai da cama e anda até um gaveteiro no canto, tirando um preservativo da última gaveta.
— Eram do Azevedo, eu tinha medo de que ele engravidasse alguém antes de terminar seus estudos e nunca deixava essa gaveta vazia. Ainda estão na validade — explica-se, um tanto acanhada ao notar minha confusão.
Ela volta para mim, subindo devagar na cama.
E, então, começamos a explorar o corpo do outro sem pudor, medo ou receio, apenas cedemos aos desejos da nossa carne. Sentindo a pele, os beijos, o cheiro e ouvindo os sons que fazemos, descubro novos movimentos que até então pensei nunca mais ter competência para fazer.
Pilar mostra que realmente não se importa com a parte que me falta, arfando e se agarrando a mim a cada embalo dos nossos corpos juntos.
E, ao menos por esta noite, eu me sinto um homem completo outra vez.
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