Capítulo 16
- Dani Assis
- 11 de nov. de 2021
- 10 min de leitura
Pilar
Abro os olhos, aturdida e assustada. Começo a chorar assim que entendo que estou no meu carro e que ele está capotado. Não consigo mover meu braço esquerdo, a dor é insuportável e me faz ainda mais desesperada. Com dificuldade me solto do cinto, caindo do banco para o teto do carro, a dor no braço explode em níveis tão altos que meu grito ecoa pelo ar.
— Socorro! — berro por ajuda. É difícil me mover. A dor é forte.
Preciso reunir força e calma para com as duas pernas empurrar a porta amassada da caminhonete até que ela abra o suficiente para eu me arrastar para fora. Escorrego pelo chão de terra vermelha e grito por socorro outra vez. Minha voz é uma mistura de pranto, pavor e agonia.
Sinto um líquido quente escorrer por minha testa, passo os dedos e os mancho com o vermelho vívido do meu sangue. Meu braço dói muito, arquejo sob a dor lancinante que irradia para todo o meu corpo. Aperto os olhos e as lágrimas escorrem até que finalmente ouço um carro se aproximar e parar.
— É a Pilar? Ligue para Martim. Rápido! — escuto dizer e abro os olhos. Maciel se ajoelha ao meu lado. — Virgem Maria, como você capotou esse carro?
Penso em responder, mas abdico quando a náusea e vertigem batem com força e mesmo sentada tenho a sensação de que estou prestes a cair.
— Se acalme! — Maciel me pede.
— Dói... dói — reproduzo, arrastando os calcanhares na terra batida.
Maciel tenta me acalmar pelos minutos seguintes repetindo para eu me manter acordada e que chamou meu pai e uma ambulância. Mas, mesmo com sua rogativa, sua voz fica cada vez mais longe.
— Onde estás? — distingo a voz grave de sotaque português se aproximando.
— É melhor não mexer nela, Martim. Espera a emergência.
— Achas que uma ambulância chegará em quanto tempo? Até lá minha miúda estará morta. — grita ele.
Não consigo suportar a dor. Tudo apaga.
Tento abrir os olhos, porém minhas pálpebras pesadas impedem. Ouço vozes distintas ao fundo, um sussurrar que não me permite distinguir as palavras. Tento me mover, mas meu corpo dolorido logo protesta e me faz manter no lugar. A única coisa que consigo fazer é entreabrir os lábios e murmurar por meu pai.
— Ela acordou? — ouço uma voz rouca, aproximando-se de mim.
— Está sonolenta pelo anestésico que demos para colocar o osso do braço no lugar.
— Pilar? — sussurra próximo ao meu ouvido.
Forço meus olhos a se abrirem e sorrio vagarosamente ao discernir Zander. Ele suspira aliviado.
— Vou levantar sua cama — diz a senhora de uns sessenta anos vestindo um uniforme azul claro. Percebo que estou no hospital e tudo antes deste momento volta à minha mente; o mal-estar, o acidente com o carro, a dor insuportável no meu braço, meu pai aflito, a chegada ao hospital e eu apagando outra vez.
— Vou ajustar seu leito — diz ela, que depois coloca um pouco de água num copo e o leva com gentileza até minha boca. Sorvo o líquido devagar. — Como está se sentindo? — pergunta de maneira afável.
— Um pouco fraca — respondo, tentando me mover mais uma vez.
— Logo estará melhor, é o efeito do anestésico. O doutor Marcondes vai passar mais tarde para te ver. Qualquer coisa é só chamar por uma das enfermeiras — completa ela, saindo a seguir.
— Pina e Pietra? — sussurro a Zander.
— Estão na fazenda. — Ele se aproxima mais e escorrega os dedos por meu rosto.
— Devem estar bravas por eu não ter ido buscá-las.
Zander franze a testa e meneia a cabeça.
— Não estão bravas. Estão assustadas pelo acidente. Todos estavam. — O semblante angustiado e o tom afetuoso de sua voz me fazem perceber que ele faz parte do todos.
— Não sei como aconteceu, acho que minha pressão baixou... — Corro os olhos pelo gesso que encobre todo o meu braço, apenas meus dedos à mostra. — Não queria assustar ninguém.
Zander acede com a cabeça à medida que esquadrinha minha face, demorando-se em cada detalhe. Ele tenta esconder o ar aflito com um sorriso fraco.
Busco inclinar a cabeça para que meus lábios toquem os dele, mas a tentativa é frustrada pelo corpo dolorido. Ele percebe e vem até mim, repousando seus lábios quentes sobre os meus. Sinto como se não estivesse mais nesta cama de hospital e sim no meio do olival com seus braços enlaçando minha cintura e sustentando meu corpo. Mas tudo desaparece quando a porta do quarto se abre e Zander se afasta rápido.
— Queres me matar? — Meu pai esbraveja com os olhos marejados ao me ver acordada. — Este é teu objetivo. Pois, saibas que não tenho idade para que a cada mês uma de vocês me assombre deste jeito — rezinga, uma mão no peito.
Ele balança a cabeça, como se tentasse afastar a imagem de sua mente.
— Estou bem, pai — murmuro, pensando ser suficiente para acalmá-lo.
— Capotaste um carro, levaste uma pancada na cabeça e quebraste um braço... Oras, como isto é estar bem? — Ele se senta na poltrona ao lado da minha cama e continua: — Deus, tu já me fizeste enterrar minha companheira, não me faças enterrar uma de minhas miúdas — conjetura, tirando os óculos.
— Não vai enterrar ninguém, pai. Suas miúdas são fortes, acidentes de carro ou quedas de árvores não vão nos derrubar. — Forço-me a sentar para mostrar que estou bem.
Meu pai me abraça por um longo tempo.
— Podes ir, Zander. Suria te esperas lá embaixo.
Zander entreabre os lábios, querendo dizer alguma coisa. No entanto, desiste e concorda. Vê-lo cruzar a porta faz com que o quarto se torne frio, quase inabitável, estava quente e acolhedor enquanto ele estava ao meu lado.
— Pilar! — As meninas gritam da varanda assim que me veem descer do carro. Elas correm e abraçam minha cintura.
— Por que fez isso? — inquire Pina, os olhos lacrimejados.
— Não precisa chorar. Estou bem, meu amor.
— Fiquei com medo — completa ela, abraçando-me mais forte.
— Devagar, meu corpo está dolorido — respondo e ambas me soltam.
Com as duas a tiracolo chego à sala e me sento. Agradeço mentalmente por estar em casa.
— Uma noite no hospital não é pouco?
— Não é! — interpõe Pietra. — É o suficiente para quem teve uma concussão leve.
— Conclusão? — Pina indaga à Pietra, vincando a testa.
— Concussão. Uma pancada na cabeça.
— Por que não diz uma pancada na cabeça? — reclama Pina, sentando-se ao meu lado.
— Porque o nome é concussão — responde, dando de ombros.
— Falem baixo, minha cabeça ainda dói — alerto, ajeitando-me no sofá.
— É por nossa culpa que você se acidentou, não é? — Pina murmura chorosa, enfiando a cabeça na curva do meu pescoço.
— Claro que não, de onde tirou essa ideia? — indago, afastando sua cabeça para que me olhe nos olhos.
— Você tem muitas coisas para fazer e ainda tem a gente para cuidar, se nossa mãe não tivesse morrido...
— Ei, preste atenção! Vocês não são problemas. Nunca mais diga isso, Pina. Nunca mais — contesto, com firmeza. — O destino quis me dar mais que duas irmãs, ele quis me dar duas filhas. É isso o que vocês são para mim, são como minhas filhas. E não existe nada neste mundo que eu não seja capaz de fazer por vocês, entenderam? Eu as amo mais do que qualquer outra pessoa e nunca se esqueçam disso.
As duas apoiam suas cabeças em minhas pernas, uma de cada lado. Com a mão livre afago seus cabelos. Sinto meu coração partir com a menção angustiada de Pina.
— Por que não se deitam juntas e assistem um pouco de televisão? Vou preparar um lanche e levar para vocês — sugere Dona Gertrudes.
— É uma ótima ideia. Vamos, meninas! — peço ajuda, esticando minha mão livre.
Passamos o dia assistindo televisão e conversando. Pina e Pietra não me deixam só por um único minuto, perguntam constantemente se estou bem ou se quero alguma coisa. Ainda sinto dor por todo o corpo, mas evito transparecer e preocupá-las ainda mais.
— Posso dormir com você? — pergunta Pina, agarrada a mim.
— Eu também? — questiona Pietra, agarrando o outro lado.
— É claro que podem — respondo, inalando o aroma adocicado de melancia do xampu que usam.
— Quem vai nos levar para a escola? — pesquisa Pietra.
— Papai levará vocês. Eu ficarei com essa tala por quatro ou cinco semanas — revelo.
— A gente pode faltar amanhã? Queremos ficar com você — demanda Pietra, a voz tímida e ansiosa. É atípico que venha dela o pedido para faltar. Não preciso de tempo para aceitar seu pedido, basta focar nos olhinhos doces e amedrontados.
— Sim, vocês podem. — elas me abraçam. — Ai, ai, ai! — protesto, quando me apertam mais do que posso aguentar.
Pela manhã, as meninas ressonam sem hora para acordar. Relanço pelas quatro mãozinhas que me seguram, pensando em como me levantar sem que acordem.
— Hum! — Pina murmura quando me movo, mas não acorda.
— Aonde vai? — Pietra cochicha, quando desperta ao me ver tentar sair da cama.
— Volte a dormir. Só vou ao banheiro, tomar meus remédios e comer alguma coisa.
— Você vai sair da fazenda? — questiona, a testa franzida, os cabelos bagunçados.
— Não, meu amor, eu não vou. Prometo!
Pietra se levanta e me ajuda, retornando para dormir ao lado de Pina. No banheiro, a tarefa de fazer as coisas com apenas um braço é desgastante. Zander me vem à cabeça, e em como deve ser complexo habituar-se a vida sem uma perna. Estar com a tala me faz entender e visualizar a dimensão de como é difícil não ter um dos membros.
Demoro o dobro do tempo para conseguir escovar os dentes, lavar o rosto e me vestir. Alço meu celular da cômoda, mas logo percebo que não consigo usá-lo com uma mão só. O escoro sobre o móvel para desbloquear a tela e verificar as notificações.
Espanto-me com as dezenas de mensagens preocupadas de Amara — que diz vir me ver mais tarde —, Suria, Madá, Joaquim, Môa... todos querendo saber se estou melhor. Anelo ao notar que não há nenhuma de Zander. A última vez que nos falamos foi no hospital.
— Está com dor? — meu pai pergunta assim que me vê entrar na cozinha.
— Um pouco. — Ele se levanta e me serve uma xícara de chá e Dona Gertrudes uma fatia de bolo de banana.
— Pina e Pietra não vão para a escola, não é? — pergunta ele.
— Não, elas me pediram para faltar e eu deixei. O carro reserva chega quando? — questiono, mordendo uma fatia de bolo.
— Já chegou — responde ele.
— Essas crianças ficaram desesperadas, Pilar. Desesperadas! Elas choravam tanto, imploravam para que você não morresse também. O sobrinho de Suria foi o único que conseguiu acalmá-las — expõe Dona Gertrudes, uma mão no peito.
— Zander? Ele conversou com elas?
— Os acontecimentos em Maria da Fé são mais rápidos que rastilho de pólvora, num minuto essa fazenda estava cheia de gente... — Ela continua a contar como cada um reagiu à notícia do meu acidente. — Quando me contaram o estado em que o carro ficou, corri para acender uma vela para nossa senhora da Piedade e rezei para ela te proteger. — Ela faz o sinal da cruz explicitando sua fé. — Foi uma loucura até seu pai avisar que você estava bem.
— Tudo escureceu e quando dei por mim, estava tombada dentro do carro.
Dona Gertrudes ergue as duas mãos.
— Nossa senhora da Piedade me ouviu e salvou você.
Meu pai nos observa em silêncio antes de começar a falar:
— Tu sabes que não sei resolver as coisas no banco como faz, Pilar. Também não sei usar um computador e falar com as pessoas com a mesma desenvoltura que tu tens. — Ele apoia uma mão na mesa. — Oras, podes me chamar de xucro, não me importas. O que sei é ficar no meio destas árvores e fazer com que cresçam e deem bons frutos. Mas escutes uma coisa, miúda. No passado, com uma produção muito menor, esta fazenda também era capaz de nos sustentar. — Ele fecha os olhos e ofega. — Sei o que fazes por estas terras e por tuas irmãs. Mas se isto for à custa de tua vida, para que serves esta fazenda? Já me bastas não ter tua mãe.
Seu olhar é parecido com o de Pietra, amedrontado, assombrado. Por um instante, sinto-me culpada por não medir esforços para que nossa fazenda se torne a maior e mais produtiva da região. Talvez eu tenha passado do ponto, talvez tenha assumido mais do que minhas costas podem aguentar.
Assinto sem ter nada a responder.
— Vou para o olival. — Ele beija o topo da minha cabeça e sai.
— Nunca pensei que um dia fosse concordar com esse velho ranzinza — completa Dona Gertrudes me encarando de braços cruzados e com ares de reprovação.
Acabo de comer em silêncio e engulo dois comprimidos para dor.
— Avisa as meninas que fui caminhar — peço a Dona Gertrudes. Ao sair da sede paro por um instante, olho para o alto e vejo o céu nublado e cinzento como o retrato fiel do meu humor. Volto a andar mesmo com meu corpo se queixando e sigo em direção à obra.
— Patroa, tá melhor? — Miguel pergunta, tirando seu chapéu ao passar por mim.
— Estou bem — informo, e ele volta ao trabalho de poda nas oliveiras. Vários outros trabalhadores param para falar comigo, preocupados e felizes em me ver pela fazenda.
Avisto Zander e seus homens de longe. Um deles me sinaliza, fazendo com que Zander me veja também. Ergo a mão e aceno. Ele baixa a cabeça e descansa as mãos na cintura antes de caminhar até mim.
— Está bem? — pergunta, seus olhos se delongando no braço imobilizado.
— Estou. De verdade.
Ele aquiesce, o semblante sério.
— Desculpe não ter ido jantar na sua casa. Tive um probleminha com meu carro — confidencio, tentando tornar nossa conversa mais bem-humorada.
— Um probleminha com seu carro? É assim que chama? — Os olhos estreitados mostram que minha tentativa foi falha.
— Acho menos dramático do que esse olhar que todos me dão — respondo, dando de ombros.
— Quer saber o que foi realmente dramático? — Seu tom me faz perceber que mais um sermão está por vir. — Pina e Pietra gritando que a irmã havia morrido. Isso foi dramático.
Sinto meu peito comprimir, o ar faltar e meus olhos embaçarem.
— Eu não tive culpa — murmuro, a voz embargada.
Ele toca meu queixo, elevando minha face.
— Sei que não teve. Mas não faça parecer que não foi nada.
As lágrimas que segurei até agora, deslizam por meus olhos.
— Não disse isso para que chorasse.
— Ouvindo você, meu pai, as meninas... me faz acreditar que nada do que estou fazendo vale realmente a pena.
Zander encurta a distância e segura minha mão livre.
— Não é verdade. Você acredita e isso basta.
— Será que basta? Estou em dúvida se...
E diante de todos, Zander aproxima seus lábios dos meus e me beija.
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