Capítulo 2
- Dani Assis
- 11 de nov. de 2021
- 7 min de leitura
Pilar
Entro no quarto de Pina e Pietra e abro cortina e janela. O sol ainda tímido aponta no alto da serra e preenche o cômodo fazendo com que as gêmeas cubram, ao mesmo tempo, suas cabeças com o cobertor.
— Acordem! Vocês têm três minutos para saírem da cama — aviso às minhas irmãs caçulas que dividem uma cama de casal.
— Não quero ir para escola hoje — resmungam em uníssono.
Ter de criar uma irmã mais nova é difícil, mas quando é multiplicada por duas se torna uma tarefa que demanda toda a minha energia. Meu pai e eu quase não tivemos tempo de chorar a perda da minha mãe — que morreu por hemorragia pós-parto —, tínhamos recém-nascidas para cuidar. Eu, que na época estava prestes a completar dezoito anos, recebi mais que irmãs, recebi filhas.
— Dois minutos para saírem da cama — repercuto, separando os uniformes do colégio.
— Mas hoje é nosso aniversário — braveja Pina.
Jogo-me na cama, trazendo-as para perto e beijo o topo de suas cabeças.
— Melhor ainda, vão receber muitas felicitações e abraços no colégio, além disso, a professora Dora vai cantar parabéns para vocês — respondo, agarrando-as um pouco mais.
Elas se aconchegam a mim e ficamos as três juntas na cama por uns minutos.
— Agora é sério, levantem-se ou vamos nos atrasar! — digo, erguendo-me da cama.
Saio para a cozinha e encontro Dona Gertrude preparando o café da manhã. Ela trabalha conosco há muitos anos — desde antes das gêmeas nascerem — e nos ajuda a manter a casa em ordem, na verdade, ajuda a manter todo mundo na linha.
— Essas garotas não querem se levantar, não é? — Dona Gertrudes ajeita seu coque, encaixando de volta os fios soltos de sua longa cabeleira prateada. Em seguida, segue para o quarto de Pina e Pietra.
Da cozinha a ouço falar:
— Levantem-se ou vou esconder um punhado de lagarta-rosca nesse colchão.
Sorrio, enquanto encho minha xícara com café. As duas gritam e saem em disparada da cama para o banheiro. Não demora muito e tenho Pina e Pietra sentadas à mesa com o rosto lavado, os dentes escovados e vestidas com o uniforme escolar.
— Eu quero café puro porque hoje faço nove anos — expõe Pina, alcançando uma xícara.
— Tome seu leite e coma os ovos — contesto, tirando a xícara de café de sua mão.
— Tomar café puro na nossa idade pode impedir a assimilação de nutrientes e atrapalhar o desenvolvimento ósseo, além de irritar a mucosa estomacal. Café puro deve ser tomado a partir do final da adolescência e nós acabamos de fazer nove anos — argumenta Pietra, sorvendo calmamente seu leite.
— Mucosa? O que é mucosa? — pergunta Pina.
— Mucosa é o tecido que reveste as cavidades úmidas do nosso corpo — responde ela.
Pina olha para sua gêmea sem entender, ainda assim, balança a cabeça como se entendido. Elas são idênticas fisicamente, ambas com sua pele dourada, os cabelos castanhos e curtos na altura do queixo, os olhos pequenos e amendoados... E mesmo que eu já tenha tentado vesti-las diferente, elas pedem para se vestir igual.
A mim e papai é fácil saber quem é quem, mas para os outros é preciso atenção para distingui-las. Em contrapartida, assim que abrem a boca fica nítido quem é Pina e quem é Pietra. Pina é uma criança, divertida, carinhosa e curiosa. Já Pietra, que possui as mesmas qualidades, tem também uma inteligência acima da média e é extremamente observadora. Ainda que as duas tenham personalidades distintas, elas se complementam e não vivem uma longe da outra.
— Já coloquei o lanche de vocês na bolsa — diz Dona Gertrudes, entregando-lhes suas mochilas.
— Vou resolver algumas coisas na cidade antes voltar — informo, terminando de tomar meu café. — Onde está o papai? — pergunto.
— Aquele velho português já saiu — responde Dona Gertrudes, passando as mãos pelo avental preso em sua cintura.
— Combinamos de ir ao banco. Me esperem no carro, vou procurar pelo papai — aviso as gêmeas. Chamo por ele entre as oliveiras mais próximas da casa principal, mas não o encontro. Relanceio pelo relógio em meu pulso e devo sair agora para não atrasar as meninas. — Droga, pai! — reclamo, correndo de volta para o carro.
— Ele deve estar lá em cima — diz Pietra, apontando para a colina no fim das nossas plantações. — Ele sempre se esconde no nosso aniversário.
Aperto os olhos assim que percebo que ela tem razão. Hoje é um dia difícil, ao mesmo tempo que nos traz alegria comemorar mais um ano das gêmeas, traz também a dor de recordar a morte da mamãe e como aquele dia foi traumático em nossas vidas. E mesmo que eu sinta uma saudade absurda e um vazio irreparável em meu peito, ainda assim, consigo seguir em frente ao ponto de separar que hoje também é aniversário de morte da minha mãe. Mas para meu pai é impossível sorrir ou comemorar no dia de hoje.
— Ele não gosta quando a gente faz aniversário? — pergunta Pina.
— Não é nada disso. Ele só está pensativo com algumas coisas, mas não tem nada a ver com vocês. Vamos comemorar à noite, tudo bem? — esclareço, ligando o carro.
— É porque nossa mãe morreu no mesmo dia que a gente nasceu, Pina.
— Não é isso — digo, vacilante. Ela me encara de volta, desafiando que eu lhe dê uma explicação melhor. Baixo o olhar antes de começar a dirigir sem ter uma resposta melhor.
Pouco depois chego à porta da escola, estaciono e desço do carro para acompanhá-las.
— Divirtam-se! — digo, beijando-as na cabeça. Elas assentem e cruzam os portões. Fico por alguns instantes escoltando-as com o olhar. Sorrio ao vê-las se abraçar e coordenar seus passos, parecendo dois robozinhos de bochechas coradas.
Inclino a cabeça para trás, inspiro o ar ainda frio da manhã e penso em como pude me esquecer onde meu pai estava. Eu queria que ele deixasse de sofrer, queria que esse dia não fosse um martírio e que se lembrasse mais da dádiva em termos Pina e Pietra do que na falta que a mamãe faz. Volto para o carro e apoio a cabeça no volante por um instante, buscando afastar sua imagem sentado, sozinho e chorando durante todo o dia no alto daquela colina.
Giro a chave no contato, regressando para cumprir minhas tarefas do dia. A primeira delas é passar na loja de miudezas de Amara para pegar os enfeites da festa que faremos à noite para Pina e Pietra.
— Nem acredito que elas estão fazendo nove anos — diz Amara, separando os balões e as bandejas para colocarmos na mesa, também me entrega várias flores em papel para montarmos um painel na parede. O tema para a decoração da mesa é a primavera, estação do ano preferida de Pina e Pietra.
— Pois é, está passando tão rápido — respondo, com uma das flores na mão. — Você vai?
— É claro que vou, nunca perderia um aniversário das gêmeas. — Amara sorri de maneira afetada, enquanto corta um pedaço de fita de cetim preta à venda e amarra seus volumosos cabelos vermelhos e encaracolados.
Amara é minha amiga desde o ensino básico. E diferente de outras amigas que deixaram Maria da Fé no começo da vida adulta, nós ainda estamos aqui e não temos nenhuma intenção de sair da cidade ou da vida uma da outra.
— Vá para a fazenda por volta das seis, ok?
— E o empréstimo, conseguiu? — pergunta, debruçando-se sobre o balcão de madeira da loja.
Inspiro e faço como ela, debruçando-me também.
— Vou ter que dar as terras como garantia.
— Sério? Acha que é uma boa ideia?
— Não tenho outra saída. Preciso expandir o processamento das azeitonas, preciso construir uma nova estrutura, novas máquinas, além do engenheiro que Suria está trazendo para a cidade. É isso ou não vamos comportar a colheita deste ano. E perder nosso fruto não é uma opção.
Ela assente com a cabeça.
— Se eu puder fazer alguma para ajudar...
— Você tem o dinheiro para me emprestar?
— É claro que não, você sabe que dinheiro nunca foi meu forte — responde, fazendo cara de choro. Rimos juntas e mudamos a conversa para assuntos menos problemáticos.
Antes de entrar na agência bancária — agarrada ao envelope com os últimos documentos solicitados —, inspiro e expiro o ar repetidas vezes, buscando me acalmar.
— Oi, Pilar! — cumprimenta-me Braga, atual gerente.
— Trouxe os documentos que pediu — aviso, sentando-me na cadeira à frente de sua mesa.
Braga se levanta e caminha alguns passos até a máquina de café expresso, ele ajeita a gravata em seu pescoço enquanto espera por dois cafés. Ainda não me acostumei a vê-lo vestido assim, tão formal. Desde que assumiu a gerência do banco nunca mais o vi usar um par de jeans. Ele estudou comigo até o ensino médio e numa cidade com apenas quinze mil habitantes é impossível não conhecer todo jovem de Maria da Fé.
— Seu pai já assinou, agora só falta você — diz, entregando-me uma das xícaras que carrega.
— Assinou?
— Ele me disse que não poderia vir hoje, então assinou ontem. — Ele tira de sua gaveta o contrato do empréstimo. Entrego a ele os documentos que me pediu. Braga os confere um a um, assentindo com a cabeça a cada folha virada.
— Estão certos? — questiono, apreensiva.
— Sim, agora é só você assinar. Vou enviar para a central e logo vão liberar o dinheiro.
Ele me oferece uma caneta e indica os locais onde devo rubricar. Antes, observo o nome do meu pai e penso mais uma vez se essa é a melhor decisão. Nossas terras estão na família desde quando meus avós chegaram de Portugal com meu pai. Se algo der errado vamos perder tudo...
Meneio a cabeça para afastar o pensamento. Não vamos perder nada, vamos crescer e nosso azeite chegará a todo o país. Firmo cada folha, meu nome ao lado do meu pai.
— É isso, o dinheiro estará na sua conta em no máximo uma semana — avisa, guardando os documentos rubricados.
Aquiesço, sentindo um misto de sentimentos entre a coragem para prosperar e o medo de fracassar.
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