Capítulo 20
- Dani Assis
- 11 de nov. de 2021
- 8 min de leitura
Pilar
Encaro seu perfil envelhecido enquanto dirige pela estrada de terra que leva à fazenda Mendes. Meu pai mantém um ar sisudo e de pouca conversa. Sei que tem a ver com meu namoro, semanas atrás o ouvi perguntar para Gertrudes o que achava de Zander e em seguida dizer que não o considerava como alguém para entrar em nossa família.
Desde então, finjo não perceber como sua postura com Zander mudou.
Estou adiando essa conversa o máximo que posso, esperando que ele se acostume a enxergar sua primogênita num novo relacionamento. No entanto, depois de ver o olhar áspero que dedicou para Zander esta manhã e agora, não posso mais esperar.
— Qual o seu problema com Zander, pai? Acha que não percebi?
Surpreso por minha iniciativa, ele desvia os olhos da estrada para me encarar.
— Nenhum — profere ele com a voz mansa.
— Não é o que parece — rebato usando o mesmo tom brando.
— Estais a colocar chifres em cabeça de cavalo — responde, fazendo uma curva.
— Dizer à Dona Gertrudes que não o considera para nossa família é enxergar chifres em cavalo?
— Oras, aquela mexeriqueira! — O tom brando que usara se transforma num insultado.
— Não foi ela quem me disse, eu ouvi.
Ele se cala e se mantém assim até estacionarmos ante à sede dos Mendes, mesmo eu tentando continuar o assunto e resolver essa questão.
— Pilar, como você está? — Catarina Mendes me abraça atenta à tala em meu braço.
— Estou bem, me livro desta joça logo — exponho, apontando para o gesso.
— Não nos assuste mais, querida! Você é a joia oliva da nossa região.
Catarina Mendes no auge dos seus sessenta anos tem uma vitalidade invejável. Resoluta e prática, administra a fazenda Mendes como ninguém, ela é sem dúvida uma das mulheres que me inspiram para seguir minha jornada.
— Esta miúda acha que tem o mundo, tu não deves elogiá-la tanto — desaprova meu pai, cruzando os braços e estalando a língua ao final.
Catarina me solta, ergue o dedo indicador e diz:
— Pilar é uma empreendedora nata, uma mulher competente, uma verdadeira fazendeira. Ela trará a visibilidade que desejamos para nossos azeites, coisa que nossa geração não conseguiu. Então, se ela quer ter o mundo, o mundo é dela.
Catarina se volta para mim com um sorriso aberto e pergunta:
— Pensei que viriam amanhã? — Ela ergue os óculos de aro preto até o topo da cabeça, bloqueando os fios tintos em vermelho que escorregam por sua face. — Bom, não tem problema, queria falar com vocês o quanto antes. Rafael enviou à Alentejo uma amostra do azeite de nossas Aberquinas de três anos de idade. Eles estão em polvorosa! Não acreditam que nosso azeite pôde competir com o deles. Podem imaginar uma Aberquina de três anos contra árvores centenárias?
Nós a acompanhamos até a sala de exposição onde mantém as garrafas da última colheita. Catarina coloca seu produto em duas tacinhas de degustação de azeite. O tom escuro da taça nos impede de saber a cor do produto, já que a cor do azeite não pode ser um fator de influência. Fricciono a taça na palma da mão para aquecer o produto, depois o levo até meu nariz e inalo.
De imediato sinto um aroma frutado e de campo, grama cortada.
Aceno a cabeça em aprovação, é exatamente esse odor que deve ter. Caso o produto exalasse um cheiro rançoso ou até de azeitonas em conserva, seria desclassificado no mesmo instante. Porque características de fermentação não são aceitas em azeites extravirgem.
Em seguida, sorvo uma pequena quantidade, deixando que o azeite se espalhe por minha boca, experimentando todos os seus paladares. Inclusive o amargor e a picância tão peculiares do produto fresco e dos polifenóis que aquecem minha garganta e evidenciam sua qualidade.
— Uma Aberquina de três anos? Isso é incrível! — ressalto, admirada pela qualidade do azeite vindo de uma árvore tão jovem. — Isso mostra que nossa região é mais promissora do que pensávamos. As árvores plantadas aqui se adaptaram tão bem ao clima que seus frutos estão surpreendendo até quem cultiva há centenas de anos. Podemos pensar não só na expansão da produção nacional, como também em exportação — complemento, acalorada.
— Exportação? — meu pai questiona franzindo a testa.
— Nós podemos com essa qualidade — afirmo.
— Não estou a questionar a qualidade, miúda. Porém, tu pensares em exportação antes de expandires as vendas nacionais? Me pareces louco.
— Não vamos exportar amanhã, Martim. Mas é uma possibilidade. E com a expansão de Villa Oliva podemos... — replica Catarina.
— Tu já ouviste o ditado “um pé diante do outro”? — expõe ele.
— Seus passos são vagarosos como de uma tartaruga. — Catarina rebate, rindo.
Ouço-a com um sorriso radiante. Ela verbaliza tudo aquilo que eu acredito. O crescimento não será só de Villa Oliva ou da fazenda Mendes, mas de todos os microprodutores de nossa região. Tornando-nos uma cadeia produtiva próspera e desenvolvida.
— Esse é o meu maior sonho — revelo a Catarina.
— Estamos cada vez mais perto de realizá-lo, querida. — Ela estende uma mão e eu a aperto, confiante em suas palavras.
Antes de irmos para casa, passamos para buscar as meninas na escola. A tarefa está nas mãos do meu pai e durante esse tempo eu não estive na escola nenhuma vez, por isso elas sorriem animadas ao me verem de pé em frente ao portão.
— A gente estava com saudade de você nos buscar, Pilar — confessa Pina ao entrar no carro e se acomodar no banco traseiro.
— Miúdas ingratas! — rezinga nosso pai, sorrindo — Pois, vou continuar a buscá-las para sempre.
— Não! — As gêmeas gritam em uníssono.
Eu começo a rir e ligo o rádio.
— A gente vai jantar na casa do Zander hoje? — indaga Pina, entusiasmada.
Antes que eu possa responder, meu pai encara as meninas no banco de trás e pergunta:
— Onde?
— Na casa do Zander. É bem legal quando a gente vai à casa dele — responde Pietra.
As meninas continuam a falar entre si como gostam de Zander e como se divertem na casa dele. De esguelha, vejo seu semblante alterar de água para vinho.
— Meninas, o que aprenderam hoje? — Tento uma mudança no assunto.
— As pequenas não sairão de casa esta noite — demanda ele, impositivo.
— O quê? Por quê? — Pina enfia a cabeça entre os bancos ao ouvi-lo. — Vai ter alguma coisa na fazenda? Zander vem jantar com a gente então?
— Por que está fazendo isso? — questiono.
— Pois vós não me pedistes para assistir aquele filme de heróis. Vamos vê-lo esta noite — ele diz às gêmeas, ignorando-me.
— Pai, a gente não pode ver amanhã? — intercede Pietra.
— Não, vamos vê-lo hoje. Estavam tão animadas, pois então, veremos hoje.
— Mas o Zander...
— Vamos vê-lo hoje! — impõe com rigor.
Baixo a cabeça e respiro fundo buscando compreender a razão dele agir assim.
— Pilar você avisa o Zander que hoje a gente vai ver filme com o papai. — Pina diz, cabisbaixa ao desistir de barganhar com nosso pai.
— Por que está agindo assim? — questiono de novo, aguerrida.
Ele me encara enviesado.
— Não estou a fazer nada. Só quero um tempo com minhas miúdas. Faças o que quiseres de tua vida, mas minhas pequenas ainda são minhas pequenas.
— Ninguém disse que elas não são suas. Só iriamos jantar com Zander. Suria também...
— Estais a estragar tua vida com este forasteiro, Pilar — murmura ele, colocando para fora o que está em sua mente.
As meninas percebem que o assunto é sério e silenciam de imediato.
— Estragar minha vida? Como Zander estragaria minha vida?
— O parente de Suria não és gajo certo para ti.
— Seja claro, pai. Diga exatamente o que está pensando.
Ele cerra os lábios e mantém o olhar na estrada.
— Diga o que está pensando — insisto, sem conseguir mais aplacar a exaltação.
— Baixe o tom, miúda — adverte, tirando uma mão do volante para me apontar o dedo.
— Então me diga.
— Careces de um homem capaz de lidar com o trabalho na fazenda. Não estarei a cá para sempre. Um homem forte e que entenda de lavoura é o que tu precisas para levar o legado de Villa Oliva adiante. Este gajo, além de físico incapacitado, não entende sobre o olival.
Sua fala me pega de surpresa, de todas as coisas que estava preparada para ouvir esta não era uma delas. O sangue que circulava em brasa por minhas veias, arrefece enfraquecido. Mais do que um balde de água fria, o efeito de suas palavras é o mesmo que me abandonar sem abrigo nas geleiras do Ártico.
— Além de ofender o Zander, está dizendo que eu não sou capaz de levar esse legado adiante? Que Pina e Pietra também não serão? Que precisaremos de um homem que você aprove para isso?
— Não coloques palavras em minha boca. És capaz e será até o fim, mas uma família sem um homem forte, é uma família sem arrimo.
— Suas filhas, mulheres, não bastam? — As palavras saem adormecendo minha língua.
Ele tenta me fazer entender seu ponto de vista, mas a cada frase pronunciada me sinto mais e mais desconsiderada até que desisto de falar e ouvir. Mantendo-me em silêncio o restante do caminho, observo pela janela a cidade que nasci e fui criada e a fazenda que domino cada centímetro quadrado.
Saio do carro e sigo direto para meu quarto. É impossível conter a bola presa em meu estômago, ela sai em forma de lágrimas de decepção e raiva. É dolorido ser levada em tão baixa conta por seu próprio pai, mesmo depois de tudo o que fiz por nós, sobretudo o que fiz por nossa família e nossas terras durante todos esses anos.
Sento-me chão e encostada na cama seguro minha boca para abafar o som do meu choro. A porta se abre e de costas eu seco meu rosto com o dorso da mão. Pietra entra e se senta ao meu lado.
— Foi bem idiota o que o papai disse, ele conseguiu ofender você e o Zander numa mesma frase — murmura ao meu lado, acarinhando meus cabelos. — Não liga para ele.
— Tudo bem se forem amanhã ao Zander? — pergunto, dissimulando que estou bem.
Ela encara meu rosto, demorando-se em meus olhos avermelhados.
— Eu sei que não gostou do que o papai disse, Pilar. — Ela meneia a cabeça, descrente. — Eu também não. Segundo ele, mesmo eu sendo mais inteligente que todos os meninos da minha classe, ainda assim um deles vai me dizer o que fazer no futuro? Quando eu me casar será porque eu amo essa pessoa e não para ele me mandar qualquer coisa. Papai foi... ele foi... — indignada, ela continua a menear a cabeça repetidamente.
— Errado e desnecessário — completo.
— Eu ia dizer babaca — expõe ela, irritada. — O papai foi antiquado e babaca.
Ela consegue me fazer sorrir diante de sua repulsa, tão jovem e tão perspicaz. Pietra tem razão, quando ela se casar e se um dia quiser se casar, que seja por amor e nada além.
— Vamos mostrar do que somos capazes. — Ergo a mão, Pietra espalma a dela contra a minha. — Somos as melhores de Villa Oliva, não somos?
— Somos!
Depois do jantar meu pai se senta na sala para assistir o tal filme com as meninas, elas não parecem empolgadas com o programa, mas se sentam com ele. Passo no meu quarto para vestir um casaco e sair. Ao passar pela sala, Pina e Pietra reforçam que vão ver Zander amanhã.
— Tu entendeste o que eu te disse mais cedo, não? — meu pai inquire, com os olhos na TV.
— Entendi cada palavra — respondo e saio apressada.
Quando estou distante o suficiente da sede, paro e inalo o ar frio noturno para me acalmar. Antes de entrar na casa de Zander, fecho meus olhos por alguns minutos refletindo sobre meu pai.
— O que foi? — ouço sua voz grave e abro os olhos. Zander se aproxima e estuda meu rosto. — Quer um chá? — pesquisa, sorrindo, fazendo menção ao nosso primeiro beijo.
— Algo mais forte, bem mais forte.
Desabo sobre o sofá e recosto a cabeça. Zander me olha como se lesse em minha face tudo o que não quero verbalizar. Ele baixa a cabeça e em silêncio caminha até a cozinha, de lá tira uma garrafa de licor de aguardente.
— É a única bebida que tenho. Joaquim me deu esta garrafa há algumas semanas.
Sorrio e sorvo de uma vez a bebida doce e forte. Os licores de Joaquim não enganam mais ninguém, todos sabem que eles têm um teor alcoólico mais alto que qualquer outro e é perfeito para amortecer minha noite.
— Quando acordei pela manhã a última coisa que pensei foi encerrar o dia bebendo um licor.
— Tem a ver comigo? — pergunta, fitando-me. Nego com um aceno e sorvo mais uma dose. Sua voz soa preocupada, parecida com a minha quando tento esconder as inseguranças que me cercam.
Ambos sabemos que estou mentindo.
Ambos sabemos ocultar nossas preocupações.
Ambos sabemos esconder o que nos aflige.
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