Capítulo 22
- Dani Assis
- 11 de nov. de 2021
- 9 min de leitura
Pilar
Corro para a Amara assim que ouço seu carro buzinar. Ela veio para me levar ao médico e finalmente tirar essa tala do braço. Não vejo a hora de ter todos os movimentos de volta.
— Obrigada por me levar — digo, assim que entro no carro.
— Que tipo de amiga eu seria se não te levasse para se livrar desse gesso? E o bonitão, cadê? — indaga, esticando a cabeça para espiar ao redor.
— O bonitão está na obra.
— Pensei que o veria — ela faz um bico com os lábios, desapontada.
— Se comporte, Amara.
— Comportada é meu nome do meio, meu amor. Mas seu boy é gato demais para não se apreciar. — Ela ri, liga o carro e começa a dirigir. — Cruzei com seu pai ontem saindo da loja do Moca e ele mal me cumprimentou, na verdade, ele virou a cara. Achei tão estranho.
Arfo, sem ânimo para descrever a ela a atual relação com meu pai.
— Que suspirada foi essa? Aconteceu alguma coisa?
— Estou fazendo algo que ele não quer. — Desvio o rosto para observar a paisagem pela janela do carro. — Ele disse que preciso de um homem forte que receba o legado de cuidar da fazenda. Que Zander além de ter um problema físico não entende nada do olival.
— Seu pai disse isso? — Amara desvia os olhos da estrada para mim.
— Com todas as letras.
— Seu pai deveria agradecer por você cuidar de tudo. Você trabalha na fazenda sem folga e ainda tem as gêmeas que são mais suas filhas que dele. Já não basta o Ávila que foi escolha dele?
— Não foi escolha dele — contesto, mirando seu perfil. Amara troca de marcha e faz um som de desaprovação com a língua.
— Já faz tanto tempo que não deve se lembrar, mas eu me lembro muito bem do seu pai empurrando aquele mauricinho para cima de você e sonhando com o dia em que as duas fazendas se juntariam. Além do que Ávila não gostava das gêmeas, deixava isso claro e seu pai fazia vista grossa. — Amara tira uma mão do volante e aponta um dedo para o alto para dar ênfase em sua fala.
— Eu não entendo por que de uma hora para outra ele mudou com Zander. Ele costumava falar que ele era um bom gajo e como seu trabalho ficaria para a história de Maria da Fé e agora... Acredita que ele não deixou as gêmeas irem comigo jantar na casa do Zander. Inventou de assistir um filme com elas.
— De repente o cara passou de engenheiro de uma obra para genro. Ele deve estar com ciúme ou não acha que Zander esteja à altura do Ávila.
— Ciúme? De quem?
— De você, das meninas... Vocês passam bastante tempo com Zander, seu tempo livre é sempre na casa dele. Eu te entendo, se namorasse um boy daqueles não sairia do quarto. Ainda bem que sou uma amiga bem resolvida, caso contrário ficaria com ciúme também.
— Amara!
— Só estou dizendo. Um bom psicólogo resolve isso na cabeça do seu pai.
Ouvir as conjurações da Amara me faz ainda mais confusa, sem saber o que pensar ou como reagir a meu pai. Não podemos ficar brigados para sempre, tampouco tenho intenção de afastar Zander.
Chegamos ao hospital. Nos sentamos para esperar meu atendimento e ela continua:
— Zander sabe que foi desaprovado como genro?
— Não, mas tenho medo de ele notar que meu pai...
— Esqueça, ele não é bobo! Com certeza sacou que o sogrão não é fácil de lidar. — Ela cruza os braços sobre sua bolsa de veludo vermelho combinando com seus cachos fartos.
— Pilar, — a doutora Santi me chama antes de eu respondê-la — vamos tirar esse gesso?
Ela liga uma pequena serra elétrica que cabe na palma da mão. Ainda assim, o barulho que gera é como o de uma motosserra. Ela encosta o disco giratório na tala gessada e começa a cortá-la de ambos os lados, de cima a baixo. Depois de serrá-la, força as placas para fora expondo minha pele.
— Faremos um raio-x para ver se está tudo bem. — Após o exame eu sinto meu braço um tanto molengo e sem estabilidade, mas está em ordem e não precisa mais da tala. Doutora Santi me diz que é normal e em no máximo 48 horas estarei como nova.
— Nem acredito que tenho meu braço de volta — falo, ao entrar no carro. Passo a mão em minha pele sentindo-a depois de todo esse tempo.
— Eu me lembro de quando quebrei o braço na adolescência, você se lembra? Todo mundo riscou meu gesso e eu gostava tanto dele que nem queria tirar. — Amara ri e gira a chave no contato.
— Na época eu senti um pouco de inveja, todo mundo bajulava você por causa disso.
— Bons tempos! Hoje em dia ninguém lembra que eu existo.
— Eu lembro. — Aproveito meus braços livres para abraçá-la.
— A gente podia sair um pouco, não acha? Por que não passamos uns dias na praia?
— Na praia? Está louca, Amara? — Afasto meu corpo do dela para encará-la.
— Por que não? A casa da minha mãe está vazia. Podemos voltar no domingo.
— E sua loja?
— Eu fecho! — O brilho em seus olhos quase me convence, não seria má ideia sair um pouco. As meninas sempre pedem para ver o mar, mas os compromissos na fazenda e as quase cinco horas de distância entre Maria da Fé até a praia me impedem.
— Não sei...
— Pilar, são quatro dias. Villa Oliva sobrevive quatro dias sem você.
— Eu sei, mas...
— A gente leva o Zander também. — Ela inclina a cabeça e joga o cabelo de um lado para o outro. — Ele vai no banco traseiro com as meninas.
— Não vai ser estranho...
— Estranho é não convidar. Vai, Pilar! Vamos comemorar você livre desse gesso.
Mesmo pedindo para ela me deixar na sede da fazenda, ela me leva até a obra. De dentro do carro ela procura por Zander entre os homens e não demora para encontrá-lo.
— Olha ele lá — sinaliza com o dedo. — Convida e já traz ele para o carro. Ele arruma as coisas dele, depois passamos na sede e você arruma as coisas das meninas, passamos na escola e pé na estrada. Se vocês não enrolarem, chegamos no fim da tarde. — Amara bate uma mão na outra sem conseguir esconder sua euforia.
— Preciso de tempo para arrumar as coisas das meninas e Zander não vai deixar a obra para viajar de repente.
— De que adianta namorar a dona da obra se não pode se ausentar para justamente viajar com a dona da obra? — questiona, os olhos semicerrados.
— Você me enlouquece, sabia? — Passo as mãos pelo rosto para dissipar a pressão que ela me coloca.
— Você também e eu não reclamo. Agora vá e traga aquele homem até aqui.
Zander me vê indo até ele e sorri quando me nota com os dois braços livres.
— É a sua amiga? — questiona desviando o olhar.
— Estamos pensando em ir para a praia hoje e ficar até domingo — falo, apontando para o carro.
— Só vou te ver no domingo? — O sorriso em seus lábios se desfaz.
— Não, me verá todos os dias — Zander franze o cenho. — Você vai com a gente — completo.
Ele passa uma mão pela barba, duvidoso do convite.
— Vamos comemorar que estou livre da tala. — Tento convencê-lo usando as palavras de Amara. Zander balança a cabeça e apoia as mãos na cintura.
— Tenho a obra...
— Nós temos a obra. Eu sou a contratante dos seus serviços e estou te dando folga para viajar por quatro dias, sendo que dois desses dias serão sábado e domingo.
— Minha perna... — Assim que ele cita a perna percorro os olhos por ela, imaginando como ela possa ser um impedimento.
— Você não pode ir à praia com a prótese? — investigo.
— Eu tenho uma prótese própria para água..., mas nunca a usei.
— Não pode usá-la agora? — Zander morde o lábio inferior, refletindo sobre o assunto. Sei que não compreendo todas as limitações que o envolvem, porém, estou pronta para aprender.
— É diferente... não tenho prática com ela. A prótese de banho não é tão flexível quanto essa e...
Puxo suas mãos para as minhas e o olho firmemente.
— Se não se sentir confortável com a prótese de banho, pensamos em outra solução ou ficamos na casa, ou sentados na orla... Não vou te deixar sozinho, vou estar sempre com você.
Minha última frase o pega de surpresa e na realidade a mim também. Entretanto, ela é sincera. Não tenho intenção de deixá-lo, seja lá ou aqui.
Deixo Zander para arrumar suas roupas e separar a prótese e vou com Amara para a sede. Ela corre para a cozinha para dar um abraço em Dona Gertrudes.
— Estava com saudade de você, menina. Faz tempo que não vem aqui.
— Correria na loja. — Amara pega uma ameixa da fruteira e morde.
— Vou à praia com Amara e as meninas — aviso a Dona Gertrudes — Vamos pegá-las na escola e preciso levar alguns lanches para as duas comerem no caminho.
— Seu pai sabe? — Ela joga o pano de copa sobre o ombro e cruza os braços.
— Ele está no olival? — pergunto, olhando para o corredor. Não é incomum ele vir para a casa durante o dia e descansar um pouco.
— Saiu cedo e não voltou.
— Prepara uns lanchinhos para Pina e Pietra, por favor... — Dou-lhe um beijo estalado na bochecha e saio para o quarto das meninas.
Separo uma bolsa de viagem e coloco roupa suficiente para as duas, além de produtos de higiene. Sem demora, corro para o meu quarto e faço o mesmo.
— Me ajuda a carregar — peço a Amara, levando três bolsas.
— Meu Deus, tem coisa para quatro dias ou quatro meses?
— Viajar com crianças é como fazer uma minimudança. — Amara abre o porta-malas e começa a guardar sem perceber que meu pai surge atrás dela olhando para dentro do carro.
— Vais aonde? — pergunta ele, com seu chapéu mexicano na cabeça.
— Ai meu Deus! Que susto, seu Martim. — Ela leva uma mão ao peito.
Desço os poucos degraus da entrada e respondo por ela.
— Vamos à praia, voltaremos no domingo.
— A casa da minha mãe está vazia e a loja vai ficar fechada esses dias. Decidimos espairecer e pegar um sol agora que Pilar está livre do gesso. — Amara conclui.
— Apenas vós? — investiga ele, arqueando uma sobrancelha.
— E as meninas — profiro.
— As miúdas não têm aula? — pergunta, colocando as mãos nas bolsas que guardamos para verificar o que mais tem no porta-malas. Mentalmente, agradeço não ter colocado as coisas de Zander primeiro. O que é ridículo! Ainda assim prefiro isso a começar uma nova discussão.
— Perder um diazinho de aula não reprova ninguém não, seu Martim! — Amara sorri enquanto meu pai a encara com um olhar severo.
— Posso ir sozinha com Amara e você se ocupa de Pina e Pietra chorando durante quatro dias.
Ele solta as bolsas no mesmo instante e passa por mim sem dizer mais nada.
— A coisa está bem ruim, hein? — Amara fecha o porta-malas e simula um arrepio estremecendo o corpo. Aperto os olhos por um segundo e volto para buscar os lanches das gêmeas.
— Aproveitem bastante e passem uma mensagem assim que chegarem. — Dona Gertrudes acena com seu pano em despedida.
— Vamos pegar Zander, as meninas e passar na minha casa. Jesus, já estou cansada e a viagem nem começou — reclama Amara.
Zander nos espera carregando uma mochila e uma bolsa preta que provavelmente é onde sua segunda prótese está. Ele veste uma regata que deixa as tatuagens e seus músculos à mostra, um par de jeans rasgados nos joelhos e óculos escuros do tipo aviador.
— Amiga do céu, estamos em Top Gun Ases Indomáveis!
— Para de gracinha, Amara. E não faça comentários sobre a prótese ou a perna dele.
— Assim você me ofende, Pilar. — Amara desce do carro e vai até Zander com uma mão esticada — Que bom que vai com a gente, será divertido!
Gentil, Zander retribui seu cumprimento, em seguida guarda suas coisas e se senta no banco traseiro. Amara o espia pelo retrovisor e eu belisco seu braço.
— Caramba, amiga! Eu preciso dar ré. Ré!
Chegando à escola converso com a professora e aviso que vou levar as meninas mais cedo e que elas retornarão para aula na próxima segunda-feira. Ela sai para chamar Pina e Pietra que surgem alguns minutos depois carregando suas mochilas com uma expressão desconfiada.
— O que aconteceu? — pergunta Pietra.
— Por que veio nos pegar agora? — complementa Pina.
— Vamos viajar! — Sinalizo para o carro de Amara estacionado um pouco atrás.
— Mentira! É verdade? — As duas gritam e balançam as mãos animadas. Elas nem esperam eu terminar e correm para o carro. Ao abrirem a porta, veem Zander sentado no banco traseiro e gritam como se não o vissem há mais de um ano. Tapo meus ouvidos e caminho até elas que cospem uma palavra sobre a outra. Zander ergue as mãos e pede para se acalmarem.
— Essas meninas acabaram de trocar a bateria? — Amara pergunta tapando os ouvidos, antes de seguir para sua casa e cairmos na estrada.
Por um momento, penso em meu pai e se ele vai perceber que Zander não está na fazenda. E em quanto tempo ligará os pontos para descobrir que ele também está nesta viagem.
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