Capítulo 25
- Dani Assis
- 11 de nov. de 2021
- 6 min de leitura
Zander
Marcho devagar em direção à obra, o clima ameno e montanhoso de Maria da Fé se opõe ao dos últimos dias de sol ardente que aqueceram minha pele e meu humor. Ainda consigo sentir os efeitos positivos do final de semana. Estar na companhia de Pilar e das meninas me fez, pela primeira vez, experienciar um tipo diferente de liberdade.
Parecido com o mar que tem a liberdade de decidir quando se agitar ou serenar e, ainda que possa ser revolto e intimidante, em algum momento é também amável em dividir suas águas e acolher sem distinção ou rejeição.
Sorrio ao perceber que sem planejar me permiti imergir no mar de Pilar que me acolhe sem rejeição. Penso em Pina e Pietra e como aquelas garotinhas são capazes de me serenar com sua doçura e ingenuidade. Eu que vivi anos no exército assistindo a todo tipo de crueldade e amargura, descobri um outro mundo nesta esverdeada fazenda.
Ajeito a bolsa em meu ombro e ando com o sorriso aberto. É surreal que em tão pouco tempo e com toda a reviravolta que acontecera em minha vida eu tenha encontrado o desejo de viver outra vez.
Sinto o vento soprar fraco e inalo o aroma silvestre das oliveiras. Esses frutos podem ser como os meus sentimentos, crescendo um pouco a cada dia, sem pressa ou alvoroço, apenas crescendo com convicção até estarem maduros. E no dia que amadurecerem vou poder nomeá-los como: amor.
Avisto a obra e meu pessoal, os homens se movimentam de um lado para o outro, todos em prol da finalização da fábrica. Eles trabalham sabendo o que significa para Villa Oliva e para os microprodutores da região. A estrutura primária foi concluída, faltando a divisão e acabamento dos ambientes para receber o novo maquinário.
— Bom dia — cumprimento Joaquim.
— Zander! — ele diz meu nome com surpresa. — Poxa, não sabia que viria hoje! — ele percorre ao redor procurando algo ou alguém.
— Eu avisei que voltava hoje — respondo, assentando uma mão em seu ombro.
— É que o Martim... ele... é... — Joaquim tropeça nas palavras.
— O que tem Martim? — A menção ao pai de Pilar me deixa em alerta.
— Acho melhor falar com ele... — Joaquim aponta para a construção.
Conforme avanço, saúdo meus homens e todos têm a mesma reação surpresa de Joaquim. Paro por um segundo e olho para trás, testemunho-os cochichar sem entender a razão de estarem agindo de forma tão estranha.
— O que há com eles? — murmuro.
Ao entrar no novo galpão encontro Martim, Basílio e um homem que nunca vi na fazenda. Aproximo-me com uma mão estendida para saudar Martim, mas ele se afasta.
— Ai está ele! — profere Basílio de braços cruzados, com seu ar rude e debochado.
— O senhor quer ver algo específico? — questiono Martim, solícito em atender.
Ele gira o corpo para o homem desconhecido e toca-lhe o ombro.
— Este é Rinaldi, o novo engenheiro da obra — exprime, mirando meus olhos. — Estou agradecido por teus serviços, mas não precisaremos mais deles. Depositarei em tua conta bancária o que lhe falta. Agora quero que desocupes o chalé e voltes a viver com Suria ou voltes para tua terra, o que preferistes — arremata ele, sem desviar.
Suas palavras são inesperadas e delongo um tempo para assimilá-las. Conversei com Pilar antes de vir para cá e ela não me falou a respeito de um novo engenheiro. Encaro o tal Rinaldi, de barriga proeminente, com os cabelos ralos e a testa suada. É visível seu constrangimento, parece que também não sabia que a obra já possuía um profissional.
— Pilar sabe dessa decisão? — pergunto.
Ele sorri.
— Oras, estas terras são minhas — discursa, sinalizando a si.
— Quem me contratou foi Pilar, então...
— Não faças isto, gajo! Não te humilhes desta maneira. Somos homens feitos, não coloques Pilar no meio disto. Tenhas dignidade, pegue tuas coisas e saia desta fazenda.
Aperto os olhos um segundo, buscando entender o que realmente está acontecendo aqui.
— Tem razão, somos homens feitos. Então diga a verdadeira razão para o que está fazendo.
Ele respira ruidosamente, externando suas emoções. Martim crava seus olhos em mim como um tigre à sua presa, a altivez de quem sabe ser mais forte nessa disputa. Porém, não me deixo acanhar, encaro-o com a mesma empáfia.
— Pensei que saberias teu lugar.
— Qual é o meu lugar?
Estamos a um palmo de distância, Basílio e Rinaldi se afastam.
— Foste contratado para construir uma fábrica, não para levares minha miúda a tua cama. Pilar nasceu e cresceu nesta fazenda. És uma rapariga[1] ingênua que não conhece as artimanhas do mundo. Ela pareceu uma boa isca para ti, não foi? Pareceste a ti um bom lugar para encostar?
Estreito os olhos ao ouvi-lo dizer a maldita palavra outra vez, encostar.
— Pois a mim tu não enganas, gajo! Saias sem aborrecer Pilar, diga que encontrastes ofício noutro lugar e vais te embora. — braveja com o dedo em riste.
É difícil respirar, é difícil me controlar.
— Você está errado! — atiro com firmeza.
Martim balança a cabeça em descrença.
— Tens certeza? O que farás tu quando terminares a fábrica? Vais trabalhar no quê? Sejamos honestos, Pilar necessitas de um gajo que entenda de agricultura e tenha o físico para aguentar o trabalho puxado da lavoura. Tens alguma destas coisas? — Ele termina relançando sobre minha prótese.
De cabeça baixa, afasto alguns passos sentindo o impacto de suas palavras.
— Percebi neste final de semana, enquanto tu se divertias com minhas três miúdas que eu não poderia mais deixar que isto se prolongasse. Fois tu que me obrigaste a colocar as cartas na mesa.
Suas palavras são cortantes, consigo sentir o gosto do meu sangue ao ouvi-las. Será que me deixei levar como um tolo desesperado pela perspectiva de uma nova vida, de um novo destino, de um novo recomeço?
Ergo a cabeça e o encaro friamente, entendendo que ele pode não me querer em suas terras, mas não pode decidir sobre a vida de Pilar.
— Não vou fingir para Pilar que estou indo embora por vontade própria. Você pode me tirar da fazenda, mas só Pilar pode me tirar de sua vida — afirmo.
Ele estreita os olhos enrugados.
— Tu não tens porte para estar nesta família.
— Por que não tenho uma perna? — questiono, cerrando meus punhos ao lado do corpo.
— Se preferes assim.
A soberba desse homem me faz em chamas, fúria me toma dos pés à cabeça. Preciso respirar fundo para não revidar. Volto a me aproximar, desta vez, nariz a nariz. Ele não recua e me ouve sussurrar contra sua face.
— Não pense que a falta de uma perna me impediria de fazê-lo engolir cada palavra, não pense que é melhor que eu por ter as duas pernas, não pense que tem o direito de falar esse monte de asneira. Se estou ouvindo essa merda em vez de te calar com meus punhos, é em respeito a Pilar, Pina e Pietra.
Dou-lhe as costas, Basílio e Rinaldi abrem espaço para eu passar. Antes de cruzar a saída o encaro por sobre os ombros e digo:
— Que bom que elas não se parecem com você, não merece as filhas que tem. — Ando o mais rápido que minha condição me permite. Quando estou distante o suficiente, apoio-me contra uma oliveira para me acalmar.
Minha vontade é voltar e dizer que só deixarei a construção se Pilar quiser, mas como posso trabalhar para esse homem e receber preconceito e desdenho como pagamento? Não sou obrigado, não foi o que esperei receber quando aceitei esse trabalho.
No chalé, telefono para tia Suria pedindo que venha me ver. Sento-me na cama e olhando ao redor rememoro os momentos que dividi com Pilar e as meninas. Penso em ligar para ela, porém desisto. Se eu ligar agora vou criar ainda mais confusão entre Martim e ela. Esfrego as mãos no rosto concluindo que minha vida continua como um trem desgovernado. Abro minhas malas sobre a cama e jogo nelas as poucas coisas que trouxe comigo.
Não demora muito, ouço tia Suria me chamar da entrada.
— O que aconteceu? — pergunta receosa.
— Vou voltar para sua casa — digo, carregando uma das malas para seu carro.
— Por quê? — Ela vem até mim e segura meu braço.
— Martim tem outro engenheiro para acompanhar a obra.
— O quê? — Sua expressão é parecida com a minha quando recebi a notícia. — Por quê?
Guardo a primeira mala, enquanto ela anda atrás de mim.
— Pilar sabe disso?
— Provavelmente não — respondo, pegando a segunda mala no quarto.
— Então converse antes com ela.
Enfio a segunda mala no carro.
— Zander, pare! Me escute!
— Eu não sirvo, tia. Eu não sirvo! — declaro em alto tom, extravasando meu rancor. — Não sirvo para Pilar, nem para esta fazenda e nem para o trabalho na obra. Sou um encostado tentando dar um golpe na herdeira de Villa Oliva — concluo, fechando com raiva o porta-malas.
Atônita, ela entreabre os lábios e arregala os olhos.
— É isso o que ele pensa. Já tem merda demais na minha cabeça para acrescentar mais essa, não sou obrigado a continuar nessa fazenda.
— Quem disse isso? Martim! — A decepção em seu rosto é clara.
Solto uma lufada de ar, cansado demais para continuar.
— Não é possível que Martim tenha dito algo tão horrível, ele... ele sempre foi...
— Eu só quero ir embora, tia.
Ela aquiesce, o semblante triste e os ombros caídos revelam seu desapontamento.
[1] Rapariga = menina, moça.
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