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Sem Destino - capítulo 37



Pilar



Uma vez li que: enquanto sonhamos fazemos o rascunho do nosso futuro. É por isso que nunca tive medo de sonhar alto, o mais alto que pudesse, porque sabia que este seria o único jeito de trilhar o caminho certo para o meu futuro.

Não só o meu, de todos que trabalham comigo e minhas irmãs.

Parte deste futuro está diante dos meus olhos. Está realizado.

A nova fábrica funciona em harmonia com o futuro de muitas de famílias, ela transforma o fruto colhido do pé no nosso óleo mais precioso, o azeite puro e de qualidade que ganha terreno e se espalha pelo país e, logo atravessará o oceano.

O ruído do maquinário é como o canto de centenas de pássaros ou como o som de ondas fortes quebrando na praia. Estranhas comparações que só fazem sentido para quem lutou e trabalhou muito para ver este lugar em ação.

— Patroa, experimente esse! — Miguel chega com uma dose do azeite pronto para envase. O azeite se espalhe por minha boca, sinto a acidez e a picância do produto fresco e dos polifenóis que comprovam sua qualidade.

— Perfeito! Pode envasar. — Miguel sai dedicado para a última etapa de mais essa remessa.

Saio da fábrica para me sentar nos fundos e descansar alguns minutos. Sentada num tronco qualquer deixo a cabeça pender entre minhas mãos.

Eu deveria estar satisfeita com o sonho que realizei até agora e não sentir este vazio, não sentir esta angústia. Em vez disso, é como se eu tivesse um buraco no peito tão profundo quanto um abismo. Eu sorrio, mas não sinto a alegria dos sorrisos que dou. Eu converso, mas não me sinto conectada ao que as pessoas dizem. Eu trabalho com afinco, mas não me sinto afortunada.

Falta algo.

Falta ele.

Um dia acreditei que poderia viver apenas para o trabalho e minha família. Hoje, não acredito que minha vida ficará completa sem preencher esse buraco. E mesmo sabendo que não será possível, que preciso me acostumar e seguir, anseio por ele todos os minutos do dia. Desejando que aqueça e ocupe esse espaço frio e vazio dentro de mim.

Meu telefone começa a tocar me distraindo, atendo meu pai.

— Oi!

— Estás na fábrica?

— Sim.

— Estou em casa. Venhas a cá um minuto.

— Não posso subir agora…

— Venhas a cá, miúda. É importante o que tenho a lhe dizer. — Não quero mais brigar, não quero tornar mais difícil e intragável nossa convivência. Mas, mantenho nossas conversas reservadas aos assuntos da fazenda. Encontro-o sentado na cadeira de balanço no canto.

Ele tem um envelope pardo no colo. Suspiro, imaginando o que possa ser desta vez.

— O que foi? — pergunto.

— Sentes-te aqui.

— Se você estiver inventando mais alguma, eu juro que…

— Oras, te aquiete e me deixes falar.

Ele me entrega o envelope.

— O que tem aqui? — investigo antes de abrir.

— Abras e veja.

Receosa, abro o envelope e ergo o calhamaço de papel.

— Por que está me mostrando o contrato social da fazenda? Eu tenho na minha mesa…

— Leias.

Começo a ler o contrato e logo percebo uma diferença.

— Por que fez isso? — questiono, atônita. Ele sorri.

— Estou cansado.

— Isso não explica por que está se retirando da sociedade na fazenda.

— Estou cansado — repete.

— Pai…

— Faz tempo que quero viajar. Vou aproveitar e visitar minha terra. Depois, viver na colina num chalé que estive a construir. É o lugar mais perto de tua mãe, é onde quero viver até poder estar com minha flor outra vez. Tu não precisas ir embora desta casa.

Decidi transformar a antiga casa dos meus avós em minha. Reformando aos poucos a construção abandonada e usando este tempo para acostumar as meninas que me mudaria. Nem preciso dizer o quanto choraram e garantiram que se eu saísse de casa elas iriam junto a mim. Mas a questão é que durante esses meses, nada melhorou entre meu pai e eu, ao ponto de não conseguir mais viver sob o mesmo teto que ele.

— Eu não entendo…

— Esta fazenda és tua, miúda! Não está certo tu partires daqui. És tu quem transformou este lugar. Tu és quem sabes o que fazer.

Meu pai abaixa a cabeça.

— As coisas que fiz foi a pensar em teu bem. Sei que extrapolei, que estive a causar-te sofrimento. Não só a tu, mas às tuas irmãs. As rapariguinhas odeiam o próprio pai. Mas quem pode culpar estas pequenas? Não fui o pai que deverias. Desde que tua mãe se foi, eu não fui mais o homem de antes.

— Pai…

— Não estou a abandonar vocês. Só estou à procura de descansar um bocado. Sei de meus erros… Fui intolerante com o gajo por ele ser diferente de nós e acabei por causar mal à Suria também. Mas Gertrudes me lembrou de uma coisa um tempo atrás que me fez ver que estive a errar todo este tempo. — Ele se levanta e caminha alguns passos. Continuo sentada. — Dentre todos, teu coração o escolheu. Assim como dentre tantas o meu coração escolheu tua mãe. Eu não vou mais me meter em tua vida. De minha boca nada mais sairá. Faças o que quiseres fazer sem te preocupar com ninguém.

Meu pai sai da sala, deixando-me sem reação. Meneio a cabeça, duvidosa em acreditar no que acabo de ouvir. Ele está falando sério? Tudo isso é real? Olho para o contrato novamente e vejo que a alteração é verdadeira, transferiu 90% de suas cotas para mim. Então não pode estar brincando, seria cruel demais se fizesse.

Meu sorriso se abre aos poucos, ainda incerto, mas não demora a tomar conta de todo meu rosto.

É real!

Isso é real!

Dona Gertrudes surge de mansinho e se senta ao meu lado.

— Eu ouvi tudo — conta ela, sacudindo as mãos.

— O que deu nele? — pesquiso, esperando uma explicação.

— O que deu nele? Juízo! É isso o que deu. Minha Nossa Senhora da Piedade não me nega nada mesmo, eu pedi para ela colocar juízo na cabeça dura dele e ela colocou. Minha santinha é danada. — Ela beija o pingente da santa pendurado em seu pescoço.

— Ele disse que você o lembrou de algo do passado. O que aconteceu no passado?

Ela ofega e tira o pano de copa dos ombros.

— Você não precisa saber, deixe o passado onde ele deve ficar.

Seguro suas mãos com firmeza.

— Obrigada! Seja lá o que disse surtiu mais efeito do que qualquer coisa que eu tenha dito.

— Agora tire da cabeça essa ideia de ir embora dessa casa. E vá atrás de Zander.

— Zander? Como posso ir atrás dele depois de todo esse tempo? Ele foi embora sem falar comigo, nem ele e nem Suria nunca me ligaram e…

Ela ergue o pano e me bate na cabeça com ele.

— Ai!

— Ele não ligou, você também não ligou. Vão ficar nessa até quando?

— Sim! Liga para ele! — Pina e Pietra aparecem. As duas estavam escondidas no corredor.

— Vocês estavam ouvindo? — pergunto.

— A gente sempre ouve — responde Pina, correndo para mim. — Eu sabia que estava mentindo quando disse que não lembrava o número dele.

— Sim, eu menti — assumo.

— Fala para ele voltar a viver no chalé. Diz que o papai não vai mais brigar com ele, que a fazenda agora é só sua e que o papai vai até se mudar…

— Calma! Não é assim que as coisas funcionam.

— Não é hora disso, todas sabemos que você quer — argumenta Pietra.

— Eu quero, mas e se ele… ele já pode ter… — as palavras azedam minha boca — outra pessoa.

Pina olha chocada para Pietra.

De repente, o clima feliz decai e parece que acabamos de pular de uma festa para um funeral.

— Pilar, você é a mais velha, mas tem menos neurônios que Pina. — Pietra quebra o silêncio. — Mesmo que ele tenha outra pessoa, não acha justo descobrir.

— Ei! — Pina retruca, empurrando sua gêmea.

— Ligue para Suria, converse honestamente com ela — sugere Dona Gertrudes.

Seguro meu telefone, as mãos suando e o coração disparado.

— Eu não sei. O que eu diria?

— Você sabe o que dizer — diz Pietra.

Levanto-me e saio de casa, descendo os degraus da varanda. As três vêm atrás de mim.

— Eu não vou ligar agora, não adianta me seguirem. Eu vou caminhar, sozinha.

Contrariadas, as três acenam e voltam para dentro.

Ando pela fazenda e meus passos me levam até o chalé. Abro a porta e é como se ele estivesse aqui. Sinto seu cheiro, sua presença. Preparando panquecas de banana, ou quando nos sentávamos para jantar com as meninas.

Na cama lembro de cada noite, de quando o tempo parava e não existia nada além de nós. Rememoro seus beijos, suas mãos passeando em corpo, a barba resvalando em pescoço, seu arquejo junto ao meu ouvido.

As horas passam comigo dentro desta pequena casa e, ao mesmo tempo, que ela me traz boas lembranças, também reforça o aperto e o buraco no meu peito.

O pôr do sol está próximo, o tom alaranjado é lindo. Ele colore o céu e combina com o verde das oliveiras. Eu devia ter aproveitado essa visão com Zander mais vezes enquanto ele vivia aqui.

Alço meu telefone e digito seu número, encaro a tela por vários minutos antes de reunir coragem para completar a ligação. Fecho os olhos e espero, impaciente e receosa, ouvir sua voz.

— Pilar… — ele murmura após o terceiro toque. Aperto o aparelho contra a orelha.

— Não tenho certeza se deveria te ligar… — começo, depois de uma longa pausa. — Você foi embora sem me dizer nada e… Eu sinto sua falta.

Ouço-o suspirar.

— Também sinto a sua — ele diz.

Mordo o lábio, o peito explodindo. Esperançosa de que, apesar de tudo, não seja nosso fim.

— Posso te ver? — peço, levantando-me. Se ele disser sim, viajo o quanto for.

— Onde você está?

— No chalé — respondo.

— Eu preciso desligar.

— Desligar? — Sento-me outra vez, decepcionada. — Você deve estar ocupado, eu liguei sem…

— Não é isso…

— Tudo bem, não tem problema. Eu ligo depois — falo e desligo. Frustrada, jogo o telefone sobre a cama. A esperança inflada, murcha como um fruto apodrecido.

Desabo e todas as lágrimas que segurei nos últimos meses, escapam sem contenção. O que eu pensei? Que tudo poderia voltar a ser como era? Agarro meus joelhos, escondo meu rosto e os soluços ecoam pelos cômodos vazios. Na mesma proporção que a desilusão se alastra em corpo.

Não preciso os minutos nem horas. O tom alaranjado do céu é substituído pelo azul-escuro da noite. A escuridão abraça com força e me mantém neste chão. Até que ouço o ronco de um motor e luzes invadem e clareiam o quarto.

Levanto-me e vou até à porta. Quem viria a essa hora?

Devo estar alucinando. O desejo de encontrá-lo é tão grande que estou vendo Zander descer do carro e caminhar até mim. Ele para e toca minha face, escorregando os dedos por meus lábios. Seus olhos se fixam nos meus, não consigo piscar nem me mover. Devo ter enlouquecido.

— Você está mesmo aqui? — averiguo para ter certeza de que não estou maluca.

Zander sorri e acena com a cabeça.

— Esse carro é seu?

Ele acena outra vez.

— Você não deveria ter ido embora. — Meus olhos nublam novamente.

— Me perdoa. Eu não estava bem… — Ele desvia.

Seguro seu rosto e encosto meus lábios nos dele. Nosso beijo começa devagar e cheio de saudade, mas logo se transforma em mais. Em todos os meses longe um do outro, em toda a confusão causada para nos separar, em toda a ausência que afligiu e nos causou angústia.

Nossas línguas duelam em busca de cada minuto perdido.

Agarro-me a seu pescoço. Ele laça minha cintura. É assim que quero ficar até meu último dia, até meu último suspiro. Envolta em seus braços, seduzida por seus beijos, dominada por seu corpo, sua voz, seu cheiro… Eu o quero para sempre, eu o quero ao meu lado.

Eu, finalmente, sinto que cada parte minha está preenchida, está completa.



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